Day: dezembro 22, 2019
Política Democrática: Ruy Fabiano fala de Machado como ‘vítima de plágio’
Em artigo de sua autoria publicado em revista da FAP, jornalista lembra relevância do escritor brasileiro
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Já se disse quase tudo de Machado de Assis, avalia o jornalista Ruy Fabiano na edição de dezembro da revista Política Democrática. Para ele, pouco, no entanto, se mencionou sobre o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges.
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A obra de Machado, conforme lembra Ruy Fabiano, começou a ser traduzida para o espanhol exatamente em Buenos Aires, a partir de 1940, quando Borges estava em plena atividade, não só como escritor, mas também como crítico literário e ensaísta. “E o primeiro livro de Machado em castelhano foi, muito a propósito, Memórias Póstumas de Brás Cubas”, afirma o jornalista.
“Carlos Fuentes, no ensaio Machado de LaMancha (Editora Fondo de Cultura, México, 2001), captou essas ‘coincidências’ e registra que o próprio Borges, posto diante delas, as reconheceu, declarando: ‘Por incrível que pareça, acredito que exista (ou tenha existido) outro Aleph’ – a que Fuentes acrescenta: ‘De fato: o de Machado de Assis’, continua o jornalista.
Ruy Fabiano escreve que, como todo artista de gênio, Machado é um ser poliédrico, que pode ser lido e compreendido sob ângulos diversos, que aparentemente se contradizem, mas, ao final, formam uma unidade. “Já se falou das influências francesas, inglesas, portuguesas, alemãs, espanholas, greco-romanas e judaicas na obra de Machado de Assis”, diz o jornalista.
De acordo com o autor do artigo publicado na revista Política Democrática online, já se falou do Machado cético, ateu, irônico, humorista. “Machado apolítico e, inversamente, político; Machado alienado, habitante de uma torre de marfim ou, muito pelo contrário, engajado a seu modo nas questões políticas e sociais do Segundo Reinado, como constatou o crítico e ensaísta Astrojildo Pereira”, completa.
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José Botafogo Gonçalves: O papel do Brasil no mundo a partir de 2019
O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para fora com abertura comercial
O Brasil enfrenta hoje dois desafios de natureza econômica e política. O primeiro refere-se ao modelo de desenvolvimento econômico que garanta o crescimento anual do produto interno bruto (PIB) acima de 3,5%. O modelo de substituição de importações e protecionismo comercial e de crescimento para dentro, em vigor há sete décadas, esgotou-se em função de seu próprio sucesso. O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para fora conjugado com abertura comercial.
O desafio político implica definir os interesses prioritários do País no concerto das nações, à luz do neoisolacionismo norte-americano, da emergência da China como potência econômica, política, militar e de ambições imperiais, o esforço da Federação Russa de manter seu poderio na Europa do Leste e no Mediterrâneo Oriental. No momento, a diplomacia, a academia e a mídia têm elaborado cenários variados que buscam responder reativamente à pergunta de qual papel cabe ao Brasil diante dos conflitos, abertos ou latentes, entre esses grandes polos de poder mundial.
Nestas notas sugiro uma inversão de perspectiva. Busco sugerir uma política externa brasileira definida estrategicamente em função de suas fortalezas atuais e potenciais para então, como consequência, explicitar planos de ação concretos nas suas relações com os Estados Unidos da América, a China continental, a Rússia e outros polos regionais de poder como Índia, Indonésia e África subsaariana. Excluo intencionalmente a América do Sul desta enumeração por acreditar que este subcontinente, sob a liderança brasileira, deve constituir o campo de ação propositiva da nova política externa do País e não se sujeitar a ser meramente alvo de iniciativas políticas e econômicas vindas de fora da região.
Não se trata de inventar a roda. O Brasil pode desenhar um plano estratégico semelhante ao que Chu En-lai desenhou para a China com o objetivo de transformá-la numa grande potência combinando o crescimento fronteiras adentro com uma adequada inserção internacional. A partir de 1950 o Brasil também havia decidido se transformar numa potência combinando o crescimento fronteiras adentro com um protecionismo comercial, autárquico e fortemente subsidiado pelo Tesouro Nacional. Entre os séculos 20 e 21 a China tomou carona na onda de globalização e rapidamente colocou a indústria chinesa se integrando às cadeias globais de valor. O Brasil, diferentemente, ensaiou um tímido programa de inserção de sua indústria nas cadeias regionais de seus sócios do Mercosul e manteve uma visão autárquica e protecionista em relação ao resto do mundo, seja o desenvolvido, seja o em desenvolvimento.
Segundo a revista The Economist, a globalização está sendo substituída pela “slowbalisation”, em que a integração de cadeias regionais de valor ganham uma sobrevida. É nesse contexto que se abre uma grande oportunidade para o Brasil almejar transformar-se num polo regional de crescimento econômico e de importância política, por meio de um ambicioso programa de revisão conceitual dos objetivos integracionistas do Mercosul, acoplado, também, a um igualmente ambicioso programa de negociação com a Aliança do Pacífico, com a Bolívia e o Equador e, quando possível, com a Venezuela.
Considerando que as barreiras tarifárias já quase se extinguiram nesse grupo alargado de países, os principais objetivos das negociações comerciais devem estar concentrados nos campos das restrições não tarifárias, dos obstáculos burocráticos no comércio transfronteiriço e no vasto campo das políticas regulatórias que tornam viável o melhor aproveitamento das estruturas logísticas subcontinentais, das normas técnicas até os diversos modais de transporte transfronteiras. A geografia subcontinental oferece uma base sólida sobre a qual repousaria essa nova rede de acordos comerciais.
Em primeiríssimo lugar, a produção agropecuária e seu relevante papel na conservação de uma política mundial de segurança alimentar.
Em segundo lugar, as potencialidades já bem quantificadas da capacidade de produção e exportação de petróleo, gás natural e biocombustíveis.
Em terceiro lugar, o valor e o volume crescentes de produção de energias renováveis e limpas (água, sol e vento), ambos favorecendo a sustentabilidade das produções minerais e agrícolas e seu comércio internacional.
Finalmente, em quarto lugar, o enorme potencial atrativo para os capitais públicos e privados internacionais investirem na infraestrutura sub-regional que será requerida para dar vazão ao crescimento do comércio internacional, particularmente em direção aos mercados emergentes da Ásia do Leste e do Sudeste.
O potencial a que acabo de me referir no parágrafo precedente se encontra geograficamente situado na vertente atlântica da América do Sul. As terras férteis, as bacias hidrográficas com vocação exportadora, os grandes planaltos centrais com topografias adequadas ao uso de tratores e implementos agrícolas de última geração tecnológica, a abundância de subclimas que permitem que as terras tropicais, subtropicais ou temperadas produzam enorme variedade de grãos, frutas e pecuária de corte, todos são fatores que, bem aproveitados, dão suporte a um ambicioso programa subcontinental de produção de bens e serviços destinados aos mercados continentais ou extracontinentais.
Do ponto de vista geopolítico, parece promissor que as duas maiores economias atlânticas da América do Sul, Brasil e Argentina, tomem a si a decisão de aprofundar a já existente aliança estratégica e juntas lancem um programa de integração regional ofensivo, e não defensivo, aberto, e não protecionista, amigável para os capitais disponíveis num mundo desenvolvido, mas em encolhimento estrutural, fazendo com que o conceito de latino-americanidade, tão decantado em prosa e verso pelos nossos intelectuais ibéricos, se liberte da retórica poética e invada o universo das realidades políticas.
* Ex-embaixador do Brasil na Argentina
O Estado de S. Paulo: Na era da economia de baixo carbono, Brasil já tem 552 startups ambientais
Espalhados por todas as regiões, esses empreendedores atuam nos setores de gestão da água e de resíduos, agropecuária, energia, logística e mobilidade, e uso do solo e florestas
Nos corredores da Feria de Madrid, onde foi realizada a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) nas duas primeiras semanas do mês, enquanto diplomatas discutiam, sem muito sucesso, como avançar no combate ao aquecimento global, um grupo brasileiro mostrava que negócios inovadores estão avançando rapidamente. São as chamadas clean techs – startups que fazem negócios bons para o clima e trazem soluções com o objetivo nada modesto de tentar salvar o planeta.
Esse movimento vem crescendo no País e no mundo. Entre 2018 e 2019, somente o Instituto Climate Ventures, que ajuda a estruturar startups com esse propósito, mapeou 552 negócios no Brasil que rendem impacto positivo no clima, promovendo o que eles chamam de economia regenerativa e de baixo carbono. Espalhados por todas as regiões do País, atuam nos setores de gestão da água e de resíduos, agropecuária, energia, logística e mobilidade, e uso do solo e florestas.
Em novembro, na Climate LaunchPad, competição internacional de clean techs que ocorreu em Amsterdã, o Brasil foi o país com o segundo maior número de negócios inscritos – 155 –, perdendo só para a Índia, com quase 500. No total, participaram do evento 2.601 empreendedores de 53 países.
Alerta de inundação.
Nesse cenário, estão iniciativas que podem ocorrer tanto na pequena escala quanto trazendo soluções para setores inteiros. Uma delas, de São Paulo, é a Pluvi.on, que surgiu com o objetivo de tentar salvar as pessoas de áreas de risco de eventuais enchentes. Em um mundo cada vez mais aquecido, a ocorrência de eventos extremos, como chuvas rápidas e intensas, com potencial de inundação, será cada vez mais frequente.
Para ajudar em projetos de adaptação para esse problema, a ideia dos fundadores da Pluvi.on foi desenvolver um sistema mais localizado e aperfeiçoado de previsão do tempo. Hoje, eles já conseguem dizer com uma precisão de mais de 80% (contra os cerca de 70% dos sistemas convencionais) se vai chover ou não. E o plano é em alguns anos não só elevar essa precisão para mais de 90% como conseguir alertar bairros e comunidades que podem sofrer com inundações.
“Em eventos extremos, às vezes uma tempestade intensa de poucos minutos é suficiente para causar enchentes. Uma chuva de 20 milímetros ao longo do dia não é um problema, mas em dez minutos causa um caos. E a previsão do tempo tradicional não traz essa precisão”, afirma Diogo Tolezano Pires, fundador da Pluvi.on.
A empresa começa um projeto-piloto neste verão em cinco comunidades da zona leste da capital, na várzea do Tietê, que têm alta vulnerabilidade a enchentes. Miniestações meteorológicas foram instaladas nos bairros e, por meio de uma ferramenta de conversa, apelidada de São Pedro, as pessoas poderão consultar a previsão do tempo para suas regiões.
Em um primeiro momento, elas saberão, por exemplo, se vai chover, mas a intenção é que, com o aprendizado da tecnologia e a coleta de mais dados, em alguns anos seja possível dizer, por bairro, de um modo mais micro, onde há risco de inundação.
Outro projeto vencedor da chamada deste ano de Bons Negócios pelo Clima da Climate Ventures foi o Macaúba, da startup Inocas, de Minas Gerais, que tem como objetivo gerar uma alternativa ao óleo de palma a partir da palmeira típica do Cerrado brasileiro.
“Hoje, 60% de tudo o que existe em um supermercado têm óleo de palma – do chocolate ao hidratante de corpo. Mas o plantio da palma levou ao desmatamento de grandes áreas de floresta tropical no mundo, em especial na Indonésia. Defendemos a macaúba como uma alternativa sustentável à palma”, explica Johannes Zimpel, diretor executivo da Inocas.
A ideia surgiu de uma provocação feita pela companhia aérea Lufthansa, que queria uma alternativa aos combustíveis fósseis para abastecer seus aviões. A macaúba surgiu como uma opção para isso. Hoje ela ainda não chegou ao estágio de substituir o diesel, mas a Inocas desenvolveu uma metodologia de extração otimizada do óleo, que mostrou ter as mesmas qualidades da palma.
O plantio vem sendo feito em áreas de pastagem degradada, aumentando a produtividade do gado e criando renda extra do óleo. “O Cerrado tem 50 milhões hectares de pastagens. Se o conceito fosse replicado em todas, seria possível não só melhorar a renda no pasto como ter uma produção de macaúba que atingiria o dobro da produção mundial de palma”, diz Zimpel.
Míriam Leitão: Moralidade como estratégia eleitoral
Detalhes do caso Flávio mostram que o combate à corrupção foi só uma estratégia de marketing para ajudar na eleição de Bolsonaro
O presidente Bolsonaro estava uma pilha na sexta-feira. Foi ainda mais agressivo do que o costumeiro no ataque aos repórteres que ficam na porta do Palácio. Era fácil saber o motivo do nervosismo. Seu filho Flávio está com uma montanha de explicações a dar sobre o que se passava no seu gabinete quando era deputado estadual, nos seus negócios com imóveis e no funcionamento da sua loja de chocolates. A bandeira de que faria um governo de combate à corrupção sempre foi postiça, mas fica mais difícil empunhá-la quanto mais detalhes vêm à tona sobre a estranha movimentação bancária de Fabrício Queiroz e a maneira como o senador conduzia seu gabinete de político e seus empreendimentos.
A defesa de Flávio Bolsonaro se agarrou mais uma vez à mesma estratégia de pedir para paralisar a investigação. O que o Ministério Público do Rio de Janeiro levantou até agora exigirá muitos esclarecimentos por parte do senador. Melhor fazê-los do que atacar o juiz como fez o presidente. Se Bolsonaro perguntar ao seu ministro da Justiça, Sergio Moro poderá contar das vezes em que foi atacado por suas decisões na 13ª Vara Federal de Curitiba. É tudo muito parecido com o que agora Bolsonaro diz de Flávio Itabaiana da 27ª Vara Criminal do Rio.
Dezenas de funcionários do gabinete do então deputado não compareciam ao local de trabalho, nunca pediram crachá, recebiam seus salários dos cofres públicos e faziam depósitos rotineiros na conta de Fabrício Queiroz. Havia de tudo: personal trainer que tinha emprego no outro lado da cidade, estudante de veterinária que estudava a quilômetros do Rio, cabeleireira com trabalho fixo. Difícil é saber quem de fato trabalhava naquele gabinete.
Nesta lista dos servidores de Flávio estavam a ex-mulher e a mãe do PM Adriano da Nóbrega, acusado de fazer parte de um grupo de milicianos. O mesmo Adriano foi duas vezes homenageado na Alerj, a pedido do deputado Bolsonaro, uma vez com a Medalha Tiradentes, quando ele já tinha sido preso por homicídio. Adriano, em conversa com a ex-mulher Danielle Mendonça, admite que era beneficiário de parte do dinheiro que ela recebia. “Contava com o que vinha do seu também.” A própria Danielle informa em conversa com a amiga que sabia da origem ilícita do dinheiro que por anos recebeu. Aliás, as mensagens trocadas entre ela e Queiroz iluminam o esquema. Ele avisa que ela talvez tenha que ser exonerada — do local onde nunca trabalhou na verdade — para não comprometer Flávio que ficará mais exposto com a eleição.
Dez pessoas da família da ex-mulher do presidente Bolsonaro recebiam salário da Alerj e moravam em Resende. A explicação de Flávio era de que se tratava de um escritório político do interior. Todos numa única cidade, todos parentes entre si e ligados a um dos casamentos do pai. A explicação não é crível.
Há ainda fatos estranhos na compra e venda de imóveis em Copacabana. O vendedor Glenn Dillard entrega os imóveis por um valor mais baixo do que havia comprado e recebe no mesmo dia os cheques de Flávio Bolsonano no suposto valor dos imóveis e R$ 638 mil em espécie, numa mesma agência a metros da Alerj. Os imóveis são revendidos pouco mais de um ano depois com valorização de 293% e 237%. No mesmo período, o metro quadrado em Copacabana subiu 11%. Há ainda várias confusões contábeis na loja de chocolates. E um cheque de R$ 16 mil de um outro PM depositado na conta da mulher de Flávio.
O caso ainda é o desdobramento de um Procedimento Investigatório Criminal, mas já tem muitas pontas enroladas. A reação do presidente de atacar o juiz, os procuradores, os jornalistas é típico de quem está perdendo a razão.
A popularidade do presidente chega ao fim do ano confirmando ser a mais baixa de um governo no seu primeiro ano de mandato. Só se compara a de Collor, que fez o sequestro dos ativos financeiros das famílias e empresas do país. Seu discurso de combate à corrupção foi atingido pelos laranjais do ministro do Turismo que ele nunca demitiu, pelas irregularidades do partido com o qual se elegeu e do qual saiu, mas principalmente por sombras que cercam seu filho nessa investigação. Quem acompanhou a vida política de Bolsonaro sabe que o discurso da moralidade pública que usou nos palanques foi apenas o que foi: uma estratégia eleitoral.
Alon Feuerwerker: Coalizão social está preservada, mas a dos políticos sofre corrosão lenta
Analistas e comentaristas podem dar-se ao luxo de levar a sério platitudes como “buscar a união nacional”, “fazer oposição construtiva”, “dizer não aos radicalismos”. A política real é mais crua. São apenas lutas tribais, em que o objetivo é ocupar o território da outra tribo e se possível eliminá-la, ou expulsá-la, ou escravizá-la. O verniz civilizatório oferece alguns disfarces para fazer isso de um jeito social e moralmente aceitável. E só. Assim é a vida real.
Há também as guerras dentro da tribo, disputas cujo grau de violência nada fica a dever. Veja-se por exemplo a atual conflagração no PSL. Partidos são tribos reunidas para disputa do poder, e não fraternidades voltadas para a promoção do bem comum. E a luta interna espelha a externa. E nunca se deve esquecer a lei número zero dos ecossistemas políticos: não seja tão amigo de alguém que você não possa romper com ele, nem tão inimigo que não possa se aliar.
Para saber como foi o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, e como ele termina, leve em conta os dois parágrafos acima. E outra providência é importante. Procure isolar por um momento o ruído, o que foi dito, especialmente pelo presidente mas também por quem a ele se opõe. Separe num canto as palavras e procure concentrar-se na consequência delas e nas ações. E tente também entender as motivações das palavras, em vez de simplesmente acreditar no que é dito.
Bolsonaro foi eleito por uma coalizão social complexa. O núcleo duro? Uma direita liberal-conservadora-nacionalista. A este grupo juntaram-se na hora “h” franjas de uma direita liberal-moderna-globalista e uma social-democracia antes de mais nada hoje antipetista. Contingentes que, por ação ou omissão, foram e permanecem stakeholders da ascensão bolsonarista. E tudo amalgamado por burocracias sócias e executoras do monopólio estatal da violência legítima.
É natural que haja disputas intrabloco. Mas qual das facções aceitaria hoje, por causa do antibolsonarismo, devolver o poder aos derrotados de 2016-18? Nenhuma. Talvez a social-democracia “de centro” gostasse de receber o apoio da esquerda para, aí sim, tornar-se alternativa. Mas falta-lhe por enquanto o mínimo da musculatura indispensável para subjugar o petismo. Quantos iriam à Paulista ou a Copacabana num domingo “contra os extremismos”?
Levou duas décadas para que o “centro” alijado do poder no pós-64 conseguisse estabelecer uma hegemonia sobre as forças políticas dominantes sob Getúlio-Jango. Fica a dica. Hoje tudo é mais rápido, mas ainda estamos longe de um cenário em que o “centro” consiga subjugar pacificamente a esquerda para estabelecer uma nova polarização, disfarçada de rompimento da polarização. Inclusive porque, diferente de então, ninguém está formalmente fora do jogo.
Seguidas pesquisas mostram a estabilidade do cenário. Apesar das tentativas de extrair lides de oscilações na margem de erro ou de pontos fora da curva. A explicação é simples. A coalizão social que elegeu Bolsonaro está essencialmente íntegra, e confundir o ruído das disputas internas com sinais de desmoronamento é, como se diz desde a Grécia, tomar a nuvem por Juno. Aquela ilusão produziu os centauros. Esta por enquanto não deu em nada.
Mas atenção.
O maior risco de curto prazo para Bolsonaro não está nas ameaças à integridade da base social. Isso está razoavelmente controlado, inclusive por causa dos respiros na economia. O problema está nas ambições que o ruído das disputas internas estimula na grande coalizão de políticos que entronizou o bolsonarismo no segundo turno de 2018. O risco é ver crescer os apetites por um bolsonarismo sem Bolsonaro. As atribulações do filho senador são um estímulo a jogos político-policiais já tradicionais no Brasil desde a volta das eleições diretas para presidente.
Mas tudo depende de quanto e como o presidente mantém ou perde base social, que em certo grau é também política. 2020 girará em torno dessa variável.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Juliana Sayuri: Legado de Stálin volta a inflamar debates na esquerda
Enquanto uma ala defende méritos do líder soviético, outra vê a negação de seus crimes como terraplanismo
O clichê, inspirado na célebre frase de abertura do “Manifesto Comunista” (1848), tem razão de ser: Josef Stálin (1878-1953), que faria aniversário na quarta (18), volta a ter seu legado discutido e reabilitado nas redes sociais, tanto no Brasil como em outros países.
Nos dias 26 e 27 de novembro, a editora NovaCultura.Info, da URC (União Reconstrução Comunista), promoveu o evento “140 anos do camarada Josef Stálin” na FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), a fim de celebrar o aniversário do revolucionário comunista —cerca de 70 pessoas participaram da atividade.
Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarionovitch Djugashvíli adotou o famoso pseudônimo em 1913 —em russo, “Stálin” remete a “feito de aço”. Após a morte de Vladimir Lênin (1870-1924), ele governou a URSS de meados da década de 1920 até a sua morte, 33 anos depois.
jovem stalin
Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarionovitch Djugashvíli adotou o famoso pseudônimo em 1913 - Reprodução
O selo Edições Nova Cultura, da URC, vem se dedicando a resgatar a história do líder soviético, com a publicação de livros como “Anarquismo ou Socialismo?” e “Sobre os Fundamentos do Leninismo”, de sua autoria. Segundo Lucas Medina, 32, da NovaCultura.Info, a última tentativa de editar livros de Stálin no Brasil foi interrompida na década de 1950. Após edições esparsas, nada expressivo foi às livrarias desde a década de 1980.
“Stálin foi importantíssimo para os povos progressistas do mundo que lutam pela sua libertação, pois cumpriu um papel fundamental na construção do socialismo na URSS, a primeira experiência da história. Deu o exemplo a todos os povos de que a construção de uma nova sociedade não era somente um sonho, um ideal, mas uma possibilidade concreta, que se seguiu pela árdua luta na Ásia, África e América Latina. Por isso reivindicamos Stálin, como herança da luta pelo socialismo, que ainda é o destino da humanidade para o qual devemos trabalhar diariamente”, diz Medina.
O recente revival levanta discussões acaloradas, pois essa visão positiva do líder bolchevique está longe de ser consensual.
Organizações como o Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo) criticaram a celebração do aniversário.
“Stálin entrou para a história com a vergonhosa marca de ser um dos maiores assassinos de revolucionários na história mundial. [...] Por tudo isso, expressamos nosso repúdio à homenagem a Stálin, que não é um ‘camarada’ de nenhum trabalhador que lute por justiça, mas um criminoso coveiro de revoluções que contribuiu imensamente para adiar a tão necessária revolução social mundial”, diz a nota.
Historiadores organizaram outro evento, no dia 29 de novembro, pró-marxismo e crítico ao stalinismo, também na FFLCH-USP. Participaram docentes como Daniela Mussi, Henrique Carneiro, Osvaldo Coggiola, Ruy Braga e Sean Purdy.
“O stalinismo é parte do marxismo, na mesma medida que se considere um câncer como parte de um organismo”, definiu Carneiro no Facebook. A discussão, diz Purdy à Folha, é atual pois “uma parcela pequena, mas desproporcionalmente influente, de jovens militantes da esquerda” está desenterrando o stalinismo como alternativa política.
Purdy, 53, protagonizou outro episódio em que o espectro stalinista foi invocado. A edição de estreia da revista socialista Jacobin Brasil, publicada pela Autonomia Literária em meados de novembro, incluiu um artigo do historiador pernambucano Jones Manoel, militante do PCB.
“Um enorme equívoco publicar um stalinista orgulhoso na Jacobin Brasil”, criticou Purdy no Twitter. Álvaro Bianchi, diretor do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp, que também escreveu um artigo na primeira edição da revista, tuitou: “Deveriam ter avisado antes [que Jones também estaria no expediente]”.
Embora os comentários tenham se resumido a poucos caracteres, o caso tomou outra dimensão na internet. Enquanto uns acirraram o tom contra Jones (acusando-o de “neo-stalinista” por já ter ponderado, por exemplo, que “qualquer menção a Stálin que não seja a mais apressada condenação é lida como adesão ao totalitarismo”, em artigo na revista Opera), outros trataram as críticas a Jones como censura e acusaram os acadêmicos de elitismo e racismo.
Procurado pela reportagem, Bianchi não quis comentar o caso. Purdy, por sua vez, declarou: “Não vejo como uma crítica à linha editorial de uma revista possa ser considerada censura. Critiquei a inclusão de um artigo de um autor, que acredito defender concepções de orientação stalinista, ou talvez seja melhor dizer neostalinista”.
Canadense radicado no Brasil há 20 anos, marxista e militante do PSOL, Purdy considera o stalinismo como uma “política de terror” na URSS.
“É uma mancha na tradição marxista e socialista. O marxismo é um método crítico que estuda o capitalismo para superá-lo através de uma revolução feita pela classe trabalhadora e da construção de uma sociedade socialista. Democracia e socialismo são conceitos indissociáveis na tradição marxista e do socialismo revolucionário. Não há socialismo sem democracia e vice-versa”, argumenta o historiador.
A esquerda rachou nas redes sociais: de um lado, martelou-se que, em pleno 2019, não dá pra defender Stálin; de outro, interpretou-se que o caso não diz respeito ao stalinismo, mas à liberdade de expressão. “O que foi feito é algo desleal: uma acusação ‘ad hominem’. Jones não poderia ser publicado por ser stalinista!”, criticou Gilberto Maringoni, 61, professor de relações internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC) no Facebook.
“O debate acalorado e aberto faz parte da história da esquerda, muito mais do que no âmbito da direita, que exibe um viés autoritário vários degraus acima. A internet acrescentou a tais debates o imediatismo e deselitizou a participação. Muito mais gente entra na conversa, com graus variados de conhecimentos. Ao mesmo tempo em que há debates em alto nível —o que não significa em baixa voltagem—, há a algaravia das redes. A acusação de ‘stalinismo’ não busca o diálogo. Busca o estigma e o fim da conversa”, diz Maringoni à reportagem.
Jones, 29, já perdeu as contas de quantas vezes foi tratado como “stalinista” ou “neostalinista”, um rótulo que, segundo ele, seria um tipo de chave mágica para fechar o debate. “Depois da morte de Stálin e do fim da URSS [1991], não faz sentido falar em stalinismo nos dias atuais. De tal sorte que o rótulo é injusto, porque se considera stalinismo toda leitura discordante do balanço histórico [predominante] do século 20”, diz.
A socióloga Marilia Moschkovich, 33, que faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil, interpretou as tensões dentro da esquerda como uma disputa por legitimidade entre acadêmicos marxistas de currículos “Lattes estrelados” e jovens intelectuais influentes na internet, todos de esquerda. Um gap de gerações.
“Se antes intelectuais da esquerda marxista se concentravam nas universidades, professores concursados e de carreira consolidada, o que acontece agora é diferente: jovens acadêmicos, marxistas ou não, nos deparamos com uma mudança de estrutura dessa carreira, que se tornou muito mais competitiva, mais custosa, mais difícil. Essa precarização é um fator importante para intelectuais como Jones Manoel, Sabrina Fernandes e eu, inclusive, para produzir conteúdo para internet, como alternativa para exercer o trabalho intelectual”, analisa.
Além da diferença geracional, a discussão ilustra a disputa entre diferentes correntes marxistas.
Para Jones, nas universidades predominava um certo prestígio para trotskistas formados nas décadas de 1980 e 90. Entretanto, segundo o diagnóstico do historiador, a influência trotskista agora está em declínio, enquanto se desenvolve uma vertente do marxismo produzida fora das estruturas universitárias.
“Organizações marxistas fora da chave trotskista vêm crescendo, enquanto organizações trotskistas vêm minguando. Então, esse frisson, a histeria sobre esse suposto revival de Stálin é uma tática de disputa política”, diz Jones, que condena uma visão dualista que considere “Trótski como a essência de todo o bem e Stálin como a encarnação de todo o mal”.
Leon Trótski (1879-1940) foi um intelectual marxista e um dos líderes da Revolução Russa de 1917, que depois culminaria na URSS. Preterido na disputa para assumir o Kremlin após a morte de Lênin, foi expulso da URSS e exilou-se na Europa e depois no México, onde foi assassinado por ordem de Stálin.
“O lugar que Stálin ocupa na história mede-se pelo tamanho da vitória soviética sobre os invasores nazifascistas e ao êxito dos planos quinquenais que fizeram da URSS a segunda potência mundial. Até o início da Guerra Fria, ele era tratado com respeito e confiança pelos círculos dirigentes dos Estados Unidos. Depois, foi tratado como um ditador sanguinário. Nenhum desses retratos falados é ‘o’ verdadeiro; todos devem ser problematizados”, diz o historiador João Quartim de Moraes, 78, professor da Unicamp e autor de “História do Marxismo no Brasil”.
No entanto, de acordo com Quartim, intelectual integrante do PC do B, a satanização do soviético leva a falsas equivalências, que nivelam comunismo a nazismo (e Stálin a Hitler) como “regimes totalitários”.
Em meio às discussões recentes, o PCB emitiu nota no dia 21 de novembro, posicionando-se contra revisões históricas para reabilitar o stalinismo. Na linha de Quartim, o partido ponderou: “Contudo, não aceitamos que a crítica a esse período guarde qualquer relação e identidade com a narrativa anticomunista que hoje busca colocar o comunismo no mesmo patamar do nazismo, em termos de crimes de lesa-humanidade, para justificar a proibição da existência de partidos comunistas.”
“Stálin foi um dos principais dirigentes do movimento comunista durante mais de 30 anos. É parte da história”, diz Jones. “Enquanto comunista e historiador, tenho diversas críticas, tenho balanços negativos à sua liderança e também tenho avaliações positivas, como a derrota do nazifascismo, o fim da fome,
combate ao racismo, combate ao colonialismo, desenvolvimento científico, desenvolvimento cultural. [Mas] não há onda stalinista no Brasil. É um delírio.”
O cientista político Luis Felipe Miguel, 52, professor da UnB (Universidade de Brasília), discorda. “Há um revival global do stalinismo, que está chegando ao Brasil agora. Aparece em alguns grupos políticos organizados, mas sobretudo na internet. Por dois motivos principais: um brutal desconhecimento histórico e o avanço da extrema direita”, analisa, referindo-se a um contexto maior, e não ao episódio da Jacobin Brasil.
O desconhecimento histórico levaria a idealizações e à recusa de fatos —por exemplo, o assassinato de opositores e a existência dos gulags, os campos de prisioneiros soviéticos.
“É como o terraplanismo, numa versão à esquerda: todos os historiadores estão a serviço da CIA, todos os documentos são forjados, não existe como desafiar a crença com qualquer evidência. Isso permite que o stalinismo seja entendido como destemido, como o ‘braço forte contra o fascismo’ —e, portanto, apareça como resposta ao avanço da extrema direita”, critica.
Para Miguel, é possível estar à esquerda e recusar o stalinismo ao mesmo tempo. “Não só é possível, é necessário. A sociedade que Marx sonhava era marcada sobretudo pela máxima liberdade de todos os seus integrantes. É necessário enfatizar que o stalinismo é uma distorção do ideal comunista. E que o melhor projeto da esquerda anticapitalista deve ser radicalmente democrático.”
*Juliana Sayuri é jornalista e historiadora, autora de “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018).