Day: dezembro 2, 2019

Por que a manifestação no Chile? Alberto Aggio responde à Política Democrática online

Em artigo exclusivo publicado na nova edição da revista da FAP, professor da Unesp diz que os chilenos colocaram a raiva para fora

Cleomar Almeida, da Ascom/FAP

Os chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet, durante as manifestações de outubro. A análise é do historiador, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e diretor da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), Alberto Aggio. Em artigo publicado na nova edição da revista Política Democrática online, ele afirma que “o Chile explodiu”.

» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online

Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP, que produz e edita a publicação. A fundação é sediada em Brasília vinculada ao Cidadania. Em artigo de sua autoria, Aggio lembra que, por vários dias, milhares de pessoas saíram às ruas em marchas de protesto que invariavelmente se tornaram violentas. “Estavam no foco dos manifestantes o Metrô de Santiago, as empresas de energia, os bancos controladores das famosas AFPs, que ‘garantem’ a aposentadoria da maior parte dos trabalhadores chilenos, dentre outras”, afirma.

No artigo exclusivo produzido para a revista Política Democrática online, o professor da Unesp diz que, assim como no Brasil de 2013, a repressão fez com que os protestos se amplificassem até chegar à manifestação de 25 de outubro, que reuniu mais de 1,2 milhão de pessoas no centro de Santiago. “Foi um sinal eloquente de que a estratégia do governo havia naufragado. Piñera recuou, propôs algumas reformas paliativas, procedeu a mudanças parciais em seu gabinete e, por fim, suspendeu o ‘estado de emergência’”, acentua ele.

Na avaliação do diretor da FAP, a modernização do país é atestada em números. Segundo ele, é notável também a sofisticação e até o luxo das estações do Metrô de Santiago em bairros pobres integram o cenário de um país dividido. “Sinais materiais de modernização em contraposição às carências domesticas cotidianas, às expectativas de futuro dos jovens em situação de ameaça, com a recorrente elevação dos custos de educação, além do nível das pensões dos mais velhos frente ao que trabalharam e contribuíram durante toda a vida, tudo isso formou um ‘caldo de cultura’ de raiva diante da flagrante desigualdade e de medo da regressão ao status quo anterior, vivenciado nos anos de crise, quando se implantou o modelo”, analisa.

O Chile que explodiu, de acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática online, nada mais expressa do que a reação a décadas de “estado de mal-estar social”. “Os termos em que se deu tal explosão, com sua violência costumeira, agora triplicada, confirma o paradoxo de uma democracia ainda sustentada numa ordem político-jurídica (a da Constituição de 1980) que carece de legitimidade”, avalia Aggio.

 

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Ricardo Noblat: A caminho da irrelevância

Usina de barulho

Pode ser normal um chefe de Estado estar perto de completar um ano no cargo sem ter-se empenhado em montar uma base de apoio no Congresso? E tendo abandonado o partido pelo qual se elegeu e ajudou a eleger 52 deputados federais e quatro senadores?

Parece normal a maioria das coisas que ele faz como, por exemplo, suspender a fiscalização com radares móveis nas rodovias federais, o que reduziu a aplicação de multas e aumentou de agosto para cá o número de mortos e de feridos em acidentes?

E culpar ONGs e até um famoso ator de cinema por incêndios na Amazônia é comportamento que possa ser considerado normal em um presidente da República? É verdade que ao se eleger ele disse que não havia nascido para ser político, mas sim militar.

Mas nenhum dos militares empregados por ele no seu governo – e já são mais de mil – saiu a público para avalizar uma única dessas medidas. Você pode ter ouvido militares defenderem, como o faz Bolsonaro, a ditadura de 64. Sobre torturas, calam-se. Ele, não.

Não foi um militar fardado ou de terno que acenou com um novo Ato Institucional nº 5 caso houvesse manifestações de ruas que degenerassem em violência. Foi um dos filhos de Bolsonaro que acenou, e em seguida o poderoso ministro da Economia.

Como candidato, Bolsonaro disse que o PT deu preferência aos seus militantes ao escalar os ocupantes de cargos públicos. Esqueceu-se de dizer também que o PT compartilhou o poder com outros partidos, o que nem sempre foi bom, nem sempre foi mal.

E o que ele tem feito? Aparelha a máquina do Estado com os devotos que julga mais leais, os que pensam como ele e estão dispostos a obedecer às suas ordens sem discutir. Se um deles cai em desgraça junto a um dos seus filhos, despacha-o.

Daí a mediocridade, marca de sua equipe. Daí o troca-troca de auxiliares com ou sem razão. Nem político, nem militar. Bolsonaro não nasceu para nenhuma dessas coisas. Foi expulso do Exército por indisciplina. Foi político estridente do baixo clero.

Se como deputado federal por 27 anos tivesse aprendido algo, saberia que não basta a um presidente remeter ao Congresso medidas e projetos que imagine necessários para o êxito do seu governo. Há que debater o que propõe e negociar sua aprovação.

Lavar as mãos significa falta de compromisso com suas próprias ideias. Ou pior: caracteriza uma postura de quem desejaria que o Congresso se limitasse a referendar o que ele lhe manda. É por isso que tem colhido ali tantas derrotas, e seguirá sendo assim.

Seu governo, que mal começou, corre o risco de tornar-se irrelevante, ou apenas uma usina que produz barulho. Normal, não é, embora continue sendo tratado como se fosse pelos interessados nas reformas econômicas que por ora esfriaram.

É o que ainda o sustenta. Mas até quando?


Leandro Colon: Wal do Açaí, o fantasma que ainda perturba Bolsonaro

Presidente tenta impor uma versão distorcida da revelação de que teve assessora fantasma

O medo de fantasmas fez o ex-presidente Michel Temer rejeitar o Palácio da Alvorada e preferir morar na residência do Jaburu.

Jair Bolsonaro ainda não reclamou de almas estranhas perambulando pela casa presidencial, mas tem um fantasma que perturba o presidente desde o ano passado. Seu nome é Wal do Açaí, ex-assessora do gabinete dele dos tempos de Câmara.

Na sexta-feira (29), Bolsonaro voltou a tocar no assunto em meio a mais uma ameaça que fez à Folha. Ao comentar a decisão autoritária de excluir o jornal da lista de veículos de imprensa de uma licitação da Presidência, citou o episódio da Wal e distorceu novamente a história.

Ele insiste na versão de que ela não era fantasma, afinal estava de férias em janeiro de 2018, quando a Folha investigava se a servidora prestava de fato serviços ao gabinete político.

"Tiveram a reputação dessa senhora casada destruída. Vítima de chacota na região. A Folha fez isso com essa mulher. A prova estava dada para vocês. Estava de férias", disse.

Bolsonaro espalha informação falsa ou tenta enganar as pessoas. Talvez por não engolir ter sido colocado na vala dos deputados que sempre usaram verba pública para contratar assessores que nunca trabalharam.

Em janeiro de 2018, moradores vizinhos à casa de praia de Bolsonaro, a 50 km de Angra dos Reis, contaram, em conversas gravadas, que Walderice Santos da Conceição, dona da lojinha "Wal Açaí", vendia açaí e o seu marido era o caseiro da residência do hoje presidente. Não havia nenhuma atividade parlamentar.

Em agosto do mesmo ano, a Folha comprou das mãos de Walderice um açaí e um cupuaçu, durante o horário de expediente dela na Câmara. Encurralado, Bolsonaro então a demitiu e contou essa lorota: "Tem dois cachorros lá [na casa], e pra não morrer, de vez em quando ela [Wal] dá água pros cachorros lá, só isso".

Quase dois anos depois da revelação do caso, o presidente quer impor uma narrativa. A verdade é que ele pagou com dinheiro público da Câmara uma funcionária fantasma.


Celso Rocha de Barros: Guedes

Quem vender a democracia brasileira em troca de liberalismo econômico vai acabar sem os dois

O único lado racional do governo Bolsonaro é o lado de fora. Ninguém que se propôs moderar o bolsonarismo por dentro teve, até agora, qualquer sucesso. Pelo contrário, foram todos rebaixados ao nível do chefe.

O ministro da Economia disse que entende por que os bolsonaristas pedem um novo AI-5. Segundo Guedes, os apelos por fascismo se justificam porque Lula pode convocar protestos que, inspirados em Leonardo Di Caprio, taquem fogo em tudo. A mera ameaça de algo assim já teria, ainda segundo o ministro, derrubado a reforma do serviço público.

No meio da conversa, Guedes pediu que todos aceitassem o resultado da eleição.

Na verdade, Bolsonaro abortou a reforma porque nunca quis fazê-la. Guedes fingiu que acreditou que a culpa fosse de Lula porque também precisava de uma desculpa: nunca conseguiu aprovar reforma que Rodrigo Maia não lhe tenha entregado pronta.

Não há protestos, violentos ou pacíficos, acontecendo no Brasil. Se houvesse, a democracia lidaria com eles como lidou com 2013, com 2015 e com a greve dos caminhoneiros de 2018.

Quanto a aceitar o resultado da eleição, ministro, faz só um ano, não deu tempo para esquecer: durante a campanha do ano passado, Bolsonaro disse repetidas vezes que não aceitaria o resultado em caso de derrota.

Em uma entrevista a José Luís Datena no hospital, Bolsonaro disse: “eu não posso falar pelos comandantes militares, respeito todos eles, mas pelo que eu vejo nas ruas, eu não aceito resultado diferente do que a minha eleição”.

Ministro, o senhor tem qualquer interpretação desta frase que não implique que seu chefe teria tentado um golpe de estado contra o presidente Fernando Haddad, com ou sem o apoio logístico do astro de “Titanic”?

Na verdade, Bolsonaro não é mais um “risco” para a democracia brasileira. A escalada autoritária já está em curso. A desmontagem da democracia brasileira está acontecendo agora, diante de nossos olhos.

A guerra à imprensa livre não tem igual na história do Brasil democrático. O governo Bolsonaro está tentando estrangular financeiramente todos os órgãos de imprensa que denunciem seus crimes. A Folha foi excluída de uma licitação, e a distribuição de verbas publicitárias para a TV foi alterada para punir a Rede Globo. É a mesma estratégia usada na Hungria pelo governo Orbán. Eduardo Bolsonaro, lembrem-se, voltou de Budapeste no começo do ano dizendo que havia aprendido como lidar com a imprensa.

E o aparato repressivo está sendo montado. Excludente de ilicitude na repressão a protestos é pouco sutil mesmo para Bolsonaro.
Na primeira versão desse texto eu terminava pedindo que o empresariado, os militares e a turma de Sergio Moro se pronunciassem oficialmente, em voz alta, em público, contra o autoritarismo bolsonarista. Eu sei, pode rir, eu também comecei a rir alto enquanto escrevia, por isso apaguei.

De qualquer maneira, deixo uma dica para os ricos brasileiros, uma dica que eles não merecem.

Como mostrou o artigo de Laura Carvalho na Ilustríssima de ontem, nenhum outro populismo de direita da onda Orbán é liberal em economia como Guedes lhes prometeu que Bolsonaro seria.

Quanto mais os bolsonaristas se consolidarem no poder, menos vão precisar do apoio de vocês. Quem vender a democracia brasileira em troca de liberalismo econômico vai acabar sem os dois. Como da última vez.

*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Evandro Milet: Diferenças entre liberais e conservadores

No recente livro O Chamado da Tribo, o Prêmio Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa descreve em oito capítulos a sua história intelectual e política, do marxismo na juventude para o liberalismo na fase adulta. Em cada capítulo o resumo do trabalho dos pensadores que fizeram a sua cabeça: Adam Smith, Ortega y Gasset, Hayek, Popper, Aron, Isaiah Berlin e Revel.

No capítulo de Hayek, ele descreve o ensaio “Por que não sou um conservador” incluído no posfácio do clássico Os fundamentos da liberdade desse autor. Ali ele explica a diferença entre um liberal e um conservador, apesar de terem muitas coisas em comum.

Um conservador, diz Hayek, não propõe alternativa para a direção em que o mundo avança, enquanto para um liberal o para onde nos movemos é essencial. O propósito de um conservador é ditado pelo medo à mudança e ao desconhecido, por sua tendência naturalmente propensa à “autoridade” e pelo fato de que ele padece de um grande desconhecimento das forças que movem a economia. Tende a ser benevolente com a coerção e o poder arbitrário, que pode até justificar se, usando a violência, julgar que atinge “bons fins”. Isso estabelece um abismo insuperável com um liberal, para o qual “nem os ideais morais nem os religiosos justificam jamais a coerção”, coerção essa em que acreditam tanto os socialistas como os conservadores. Esses últimos costumam responsabilizar “a democracia” por todos os males que a sociedade padece e veem na própria ideia de mudança e de reforma uma ameaça a seus ideais sociais. Por isso muitas vezes os conservadores são obscurantistas, isto é, retrógrados em matéria política.

Um conservador dificilmente entende a diferença que os liberais fazem entre nacionalismo e patriotismo, para ele as duas coisas são idênticas. Para um liberal o patriotismo é um sentimento benévolo, de solidariedade e afeto a terra em que nasceu, aos seus ancestrais, à língua que fala, à história vivida pelos seus, coisa perfeitamente saudável e legítima, enquanto o nacionalismo é uma paixão negativa, uma perniciosa afirmação e defesa do que é próprio contra o estrangeiro, como se o nacional constituísse um valor em si mesmo, algo superior, uma ideia que é fonte de racismo, de discriminação e de encerramento intelectual.

Os conservadores costumam ter muita segurança e firmeza sobre todas as coisas, o que os impede de duvidar de si mesmos. E, segundo Hayek, a dúvida constante e a autocrítica são indispensáveis para fazer avançar o conhecimento em todos os campos do saber. Um liberal costuma ser “um cético”, alguém que considera provisórias até mesmo as verdades que lhe são mais caras. Esse ceticismo é justamente o que lhe permite ser tolerante e conciliador com as convicções e crenças dos outros, mesmo que sejam muito diferentes das suas.

E conclui Hayek afirmando que esse espírito aberto, capaz de mudar e superar as próprias convicções, é incomum e quase sempre inconcebível para quem, como tantos conservadores, julga ter alcançado as verdades absolutas, invulneráveis a qualquer questionamento ou crítica.


Fernando Gabeira: Saudades do Brasil

Uma medida do AI-5 foi pôr censores nos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar a rede?

No dia em que o Flamengo se tornou campeão da Libertadores, cruzei no avião com um homem vestido com a camisa do time. Apenas nos olhamos, mas nos sentíamos unidos pela mesma tensão e esperança. Naquele momento, senti uma estranha saudade do Brasil. A seleção brasileira já não empolga como antes; o lugar foi momentaneamente ocupado pelo Flamengo.

Mas o futebol não era meu objeto de saudade, mas sim a política. Vim me perguntando na viagem de Natal para o Rio como era difícil encontrar essa sensação de unidade nacional, sobretudo em tempo de paz.

Quando digo unidade, não quero dizer unanimidade. Mas algo que congregue as pessoas para além de suas escolhas singulares. A última vez que senti isso foi no movimento pelas Diretas. A partir daí, a sensação foi escapando aos poucos.

É um pouco ingênuo acreditar nessa possibilidade. A política americana em alguns momentos conseguiu unificar os dois grandes partidos pontualmente, em temas bem definidos. Hoje, com Trump, esse sentimento deve estar se esvaindo também lá. Digo também lá porque aí as perspectivas são de confronto, com os atores se pintando para a guerra.

O Chile é uma espécie de arma que os contendores escolheram para o seu duelo. De um lado, a esquerda pedindo manifestações como a chilena; de outro, o governo de extrema direita acenando com o AI-5 e preparando-se para uma repressão sem limites, camuflada sob um nome bastante complicado: excludente de ilicitude, cuja tradução real é liberar a porrada.

Dentro desse quadro radical, uma tênue centelha do passado comum reaparece nas reações que surgem sempre que se fala de novo no AI-5. Elas têm sido rápidas e bastante amplas no mundo relativamente restrito dos que se interessam por política. Mostram não só um vigor democrático, mas apontam para uma unidade nacional contra estados de exceção.

Tenho várias razões pessoais para não acreditar num novo AI-5. A principal delas é ser velho o suficiente para conhecer as condições daquela época e as que existem hoje.

Uma das medidas do AI-5 foi introduzir pequenos grupos de censores dentro dos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar a rede? Não me refiro apenas às dificuldades técnicas, mas aos gigantescos transtornos culturais e econômicos.

Naquele tempo, vivíamos numa Guerra Fria simbolizada pelo Muro de Berlim. Embora o governo ainda respire os ares da Guerra Fria, e o muro não tenha caído para uma parcela da esquerda, a verdade é que os tempos são outros.

O movimento pelas Diretas, com seu potencial unificador, foi basicamente contra um resquício da ditadura. Qualquer novo ato ditatorial, creio eu, poderá reviver seu espírito, uma vez que, apesar de todas as divergências, estamos de acordo em preservar o sistema democrático.

É possível olhar o que se passou no Chile de forma diferente: estudar o que aconteceu e buscar soluções menos dramáticas. O número de pessoas que ficaram cegas parcial ou totalmente supera duas centenas.

O ultraliberalismo tende a trazer enormes dificuldades para a vida das pessoas. Sem sensibilidade política, não há chances de racionalizar a economia. Da mesma forma, os governos de esquerda tendem a quebrar o país com a ilusão de que dinheiro cai do céu.

Uma ampla frente contra o fantasma da ditadura está no horizonte imediato, pois ela se manifesta toda vez que falam de AI-5. Mas ela ainda não é articulada o bastante para intervir na base da instabilidade. Propor uma agenda social aos liberais e uma racionalização econômica à esquerda.

Não deixa de ser estranho falar sobre AI-5 nesse começo de dezembro. Não é que me sinta aprisionado na máquina do tempo. Mas era como se conversasse com sua tela, com pessoas que ainda estão com a cabeça em 13 de dezembro de 1968.

Para não ficar triste, posso entender isso como uma maravilha da tecnologia, estar voltando atrás para dizer: não pensem nisso, vocês vão durar pouco tempo. E os adversários não serão mais os gatos pingados do passado, mas multidões enérgicas como a torcida do Flamengo.


Demétrio Magnoli: Segredos uruguaios

O vídeo de Guido Manini Ríos circulou no dia do segundo turno, 24 de novembro. Nele, o general aposentado, que obteve 10% dos votos no turno inicial, invectivava contra a esquerda em linguagem exaltada para chamar integrantes das Forças Armadas a votar em Luis Lacalle Pou, barrando um novo mandato à Frente Ampla. A mais notável reação partiu do próprio Lacalle Pou:

“Esse tipo de coisa não pode ocorrer no Uruguai”. Enquanto ele falava, a apuração registrava empate técnico, o órgão eleitoral adiava o anúncio do resultado para permitir uma contagem rigorosa dos votos restantes e os apoiadores dos candidatos rivais confraternizavam nas ruas.

Não —o Uruguai não é uma nação civilizada por natureza. O país viveu uma ditadura de 12 anos, entre 1973 e 1985, com raízes fincadas nas ações de um esquadrão da morte de extrema-direita e nos sequestros e atentados cometidos pelos Tupamaros, de extrema-esquerda. Durante a ditadura, cerca de 20% dos cidadãos foram presos em algum momento e 10% da população emigrou, num movimento que se refletiu na paisagem de casas abandonadas em Montevidéu e em forte desvio da morfologia da pirâmide etária. A civilidade uruguaia emanou da história recente: eles aprenderam as lições da ditadura.

O primeiro segredo situa-se à esquerda, na Frente Ampla. “É uma ditadura, nada mais que isso”, definiu Pepe Mujica, referindo-se à Venezuela. O ex-presidente, antigo líder dos Tupamaros, que ainda mantém relações afetivas com o grupo, fala uma linguagem incompreensível para o PT. Os Tupamaros nasceram em 1963, sob a influência da Revolução Cubana. Hoje, porém, quase toda a esquerda uruguaia saiu da caverna do castrismo, abraçando a ideia de pluralidade política. O “inimigo do povo”, tão caro à esquerda brasileira (e argentina), não tem lugar no discurso político uruguaio.

Mais: a Frente Ampla, ao contrário do PT, não é o veículo de um projeto de poder personalista, semicaudilhesco. Tem, por esse motivo, capacidade para rever seus erros e evoluir. Isso não é tudo. A esquerda uruguaia não está presa às âncoras do populismo e do estatismo: no pequeno país vizinho, nunca houve algo parecido como o varguismo ou o peronismo. Os 15 anos de governos da Frente Ampla consolidaram uma economia aberta, um liberalismo temperado por políticas sociais.

O segundo segredo situa-se à direita, nos partidos Nacional e Colorado. Diferente da Argentina, do Chile e do Brasil, a ditadura uruguaia só colocou um general na Presidência durante a etapa derradeira, a transição iniciada em 1981. Gregorio Álvarez, o general-presidente, comandou de facto oregime desde o início. Mas a fachada civil foi providenciada por líderes dos dois partidos históricos. A ignomínia propiciou o aprendizado: enquanto a esquerda renunciava à ditadura revolucionária do futuro, a direita fazia o mea-culpa pela ditadura contrarrevolucionária do passado.

A expressão “ditadura cívico-militar” aplica-se, em graus variados, aos casos do Brasil, do Chile e da Argentina —mas, no Uruguai, o colaboracionismo civil traçou uma fronteira no interior da elite política histórica. No referendo constitucional de 1980, quando a ditadura pretendia institucionalizar uma “democracia autoritária”, as correntes majoritárias dos dois partidos tradicionais escolheram o lado do “Não”. A redenção começou ali, pela marginalização dos sócios civis de Álvarez. Os uruguaios que acabam de eleger a coalizão de centro-direita não nutrem nenhuma saudade dos tempos da ditadura.

Luis Alberto Lacalle, presidente entre 1990 e 1995, foi preso em 1973 e militou, na clandestinidade, contra a ditadura. Ele disse “Não” em 1980. Seu filho, Lacalle Pou, repetiu o mesmo “Não”, por duas vezes. Uma, semanas atrás, quando recusou o apoio de Jair Bolsonaro à sua candidatura à Presidência; outra, na jornada do segundo turno, quando rejeitou o vídeo de Manini Ríos.

Bolsonaro prometeu comparecer à posse do novo presidente uruguaio. Nessa viagem, ele será o homem mais solitário do mundo. O Uruguai de hoje é uma nação educada, civilizada. Vá cortar o cabelo, presidente.


El País: O que está em jogo na Cúpula do Clima, que busca cortes mais drásticos das emissões dos países

A partir desta segunda, Madri se transforma no centro da luta climática internacional com a COP25. Os países devem concluir as discussões do Acordo de Paris e se comprometer a reduzir a emissão de gases

Quando há um mês as ruas de Santiago (Chile) queimavam pelos protestos e o Governo do conservador Sebastián Piñera precisou desistir de receber a Cúpula do Clima anual, se pensou em cancelá-la —simplesmente, que não fosse feita neste ano. Porque essa cúpula não estava destinada a entrar para a história. O encontro é uma transição entre a adoção e o desenvolvimento do Acordo de Paris —que foi fechado após anos de negociações e fracassos na capital francesa em 2015— e a implantação do pacto a partir da próxima década, que tenta fazer com que o aquecimento global fique dentro de limites suportáveis.

Mas a Espanha se propôs a realizá-la em Madri nas datas previstas: entre 2 e 13 de dezembro. E os que estão envolvidos nessas negociações internacionais afirmam que uma das razões fundamentais para não cancelá-la era o contexto. A cúpula, que começa nesta segunda, ocorrerá em meio a uma imensa falta de liderança internacional na luta climática e em um péssimo momento para o multilateralismo. Donald Trump já iniciou o processo para retirar os EUA do Acordo de Paris, a China não dá sinais de que irá aumentar seus planos de corte de gases de efeito estufa, a Rússia não apresentou à ONU seu programa para reduzi-los, os ainda Vinte e Oito (os membros da UE sem o Brexit) ainda não conseguiram entrar em consenso sobre a meta de zero emissões para 2050... Por isso a chamada COP25 deveria ser realizada, para fugir da sensação de que a luta climática internacional é um “processo que implode”, como disse na semana passada a ministra para a Transição Ecológica da Espanha, Teresa Ribera.

Mas esse encontro também tem pela frente dois desafios concretos: um político e outro técnico. Por um lado, deve servir para que se dê uma “clara demonstração” por parte dos países em “ampliar a ambição” contra o aquecimento, disse no domingo António Guterres, secretário-geral da ONU. Por outro lado, lembrou, é preciso terminar de desenvolver o Acordo de Paris e fixar os critérios para colocar em andamento mercados de emissões, algo que até agora não foi possível fazer pela falta de acordo entre os países.

Esses são os pontos principais da COP25 que colocará Madri no centro da ação contra a emergência climática.

O que é uma COP? A sigla COP em inglês se refere à Conferência das Partes. Ou seja, a reunião —normalmente anual— dos quase 200 países que fazem parte da Convenção Base das Nações Unidas sobre a Mudança Climática. A convenção foi adotada em 1992 e estabelecia que os gases de efeito estufa emitidos pelo ser humano em sua atividade cotidiana estão contribuindo com a mudança climática. A convenção, além disso, fixou que os países participantes devem reduzir esses gases. Para avançar esse tratado são realizadas as COP, em que participam os delegados e ministros dos quase 200 países do mundo. As cúpulas ocorrem a cada ano em uma região do planeta e essa edição cabia à América Latina. O Brasil se ofereceu primeiro, mas a chegada de Jair Bolsonaro fez com que o país renunciasse. O Chile foi a alternativa, mas desistiu há um mês e a COP será realizada em Madri. Ainda que o Chile continue conservando a presidência da cúpula, o que significa comandar as negociações.

O que é o Acordo de Paris? A convenção base serviu primeiro para que fosse aprovado em 1997 o Protocolo de Kyoto. Depois, em 2015, foi adotado o Acordo de Paris, que substituirá Kyoto a partir da próxima década e que obriga todos os países a fazer cortes nas emissões de gases de efeito estufa. A soma de todas essas reduções deve ser suficiente para que se cumpra o principal objetivo do Acordo de Paris: que o aumento da temperatura média do planeta não supere os dois graus centígrados em relação aos níveis pré-industriais, e na medida do possível que não ultrapasse 1,5. Esse é o limite estabelecido pela ciência para evitar os efeitos mais catastróficos de um aquecimento que já não pode ser revertido.

O que diz a ciência? Os estudos científicos —liderados pelo IPCC, o grupo de especialistas que assessora as Nações Unidas— e os diferentes órgãos internacionais ligados à ONU alertam que os países não estão de maneira nenhuma encaminhados para cumprir as metas de Paris: devem multiplicar por cinco seus planos de corte para conseguir a meta de 1,5 grau e por três para os 2 graus. A concentração na atmosfera dos principais gases de efeito estufa só aumentou desde a assinatura da convenção base em 1992. As emissões só caíram de maneira clara em períodos de crise. “Estamos em um buraco profundo e continuamos cavando”, resumiu Guterres, que afirma que a humanidade está ficando sem tempo e “logo será muito tarde” para que o aquecimento fique dentro dessas margens seguras.

O que é a meta? Por trás dessa expressão se esconde a premissa de que os planos de corte das emissões dos países não são suficientes. “A lacuna é enorme”, disse no fim de semana a ministra chilena do Meio Ambiente, Carolina Schimdt, que ostenta a presidência da COP25. Por isso, o Acordo de Paris estabelecia revisões periódicas ao aumento dos planos de corte. A primeira é em 2020 e o objetivo político é que os Governos se comprometam a fazê-la durante essa cúpula. Esses planos são de aplicação imediata e fixam metas para 2030. Guterres destacou que espera que mais países também se comprometam durante a COP25 a atingir a grande meta a longo prazo: a neutralidade de emissões para 2050.

O que é o artigo 6? O Acordo de Paris precisava de uma regulamentação de desenvolvimento e, desde 2015, os negociadores dos 200 países vem trabalhando nele. Mas a negociação encalha no artigo 6 desde 2015. “Não quero conceber a possibilidade de que não ocorra acordo no artigo 6”, disse Guterres. Mas, na verdade, seu desenvolvimento está se complicando. Esse artigo faz referência às trocas de direitos e unidades de emissões de gases de efeito estufa entre países, e é o único de todo o acordo que faz referência ao setor privado, já que abre as portas para que as empresas possam adquiri-los.

No Protocolo de Kyoto já existia um sistema pelo qual um país que não conseguisse diminuir o que precisasse de seus gases poderia comprar de outro Estado direitos de emissões. Esse sistema deve continuar com Paris e um dos principais debates é como evitar a dupla contabilidade, ou seja, que um mesmo direito não seja levado aos balanços de redução de dois países ao mesmo tempo.

A outra perna que deve se desenvolver dentro desse artigo afeta os mercados de emissões aos que devem comparecer as empresas dos setores obrigados a fazer cortes. Por exemplo, a aviação: as companhias terão que comparecer para comprar esses direitos para compensar suas emissões. A Europa já possui um mercado desse tipo e a filosofia por trás é que quando é obrigado a pagar pelos gases emitidos, o setor privado avança à eliminação do gás carbônico. Mas a União Europeia demorou 15 anos para fazer com que seu mercado se tornasse eficaz e só recentemente conseguiu substituir as usinas a carvão, as mais poluidoras.

Jovens, cientistas e delegados negociadores

As cúpulas do clima não recebem somente delegados para negociar, além de mandatários –em Madri são esperados 50 para a inauguração de segunda-feira. Entre as 25.000 pessoas que participarão da COP25 também há outros atores como os representantes de vários órgãos científicos. As cúpulas servem para que através da apresentação de diferentes relatórios se radiografe a evolução da luta contra o aquecimento e seus efeitos. Além disso, as últimas COP ganharam a forte presença de outro ator: os jovens ativistas que estão liderando os protestos nas ruas. Em 6 de dezembro se espera uma grande manifestação em Madri liderada pela ativista Greta Thunberg. Os cientistas e jovens terão a presença de mais um ator: as empresas. Durante a cúpula de Madri se espera que um importante número de grandes companhias se comprometa a reduzir suas emissões e a lutar contra o aquecimento.


Eliane Brum: O AI-5 já se instala na Amazônia (e nas periferias urbanas)

Ações de autoritarismo explícito se multiplicam no país e aceleram a desproteção da floresta, de seus povos e de ambientalistas

O bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na reação. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, evoca o AI-5, e antes dele o zerotrês Eduardo Bolsonaro (PSL), estão latindo num lugar enquanto a matilha já está mordendo em outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se instalou. Como denominar um país em que a polícia do estado do Rio de Janeiro já matou até outubro de 2019 mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas? Se fosse enfileirar as 1.546 vítimas da polícia haveria mais de 2 quilômetros de cadáveres. Esta violência que mata os negros e pobres e faz com que as crianças, também elas pobres e negras, temam o som dos helicópteros porque seis delas já tombaram por bala “perdida” somente neste ano no Rio está conectada com a violência que faz vítimas na floresta amazônica. Os amazônicos e os periféricos não se conhecem, mas têm o mesmo rosto de quem morre no Brasil: negros e indígenas. É contra estes povos, estes rostos, que a violência está recrudescendo. As Organizações Não Governamentais (ONGs), foco da ofensiva do bolsonarismo, estão sendo atacadas porque defendem estes povos, estes rostos.

Desde o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara. E está terminando com criminalização de uma das organizações mais respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.

Em Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5 já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia. A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas. É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.

Enquanto tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma milícia que toma suas próprias decisões.

O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019, quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro. As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.

No Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17 a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo. A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão no exterior, indicado para o Nobel da Paz.

Guerreiros Kayapó fazem barreira humana para proteger Raoni, indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em evento tumultuado por fazendeiros e grileiros
Guerreiros Kayapó fazem barreira humana para proteger Raoni, indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em evento tumultuado por fazendeiros e grileirosLILO

Os guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer ao evento por temer a violência.

Submerso no noticiário produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia, representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.

Raoni com os jovens ativistas climáticos da Bélgica e da Inglaterra, que ser reuniram no encontro Amazônia Centro do Mundo para fazer uma aliança global pela floresta.
Raoni com os jovens ativistas climáticos da Bélgica e da Inglaterra, que ser reuniram no encontro Amazônia Centro do Mundo para fazer uma aliança global pela floresta.LILO CLARETO

Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio, do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar o déspota Vladimir Putin. Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga transpirando e salvando o planeta.

Em Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca aprendem.

O encontro mostrou algo que parecia muito difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas, uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também na concretude do local escolhido.

Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun, pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que ali estava sendo consumada.

Antes de os fazendeiros e grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.

Juma Xipaya defende os povos da floresta e desperta a ira dos grileiros no encontro Amazônia Centro do Mundo, em 18 de novembro, em Altamira. Ao seu lado, Mitã Xipaya, jovem liderança indígena.
Juma Xipaya defende os povos da floresta e desperta a ira dos grileiros no encontro Amazônia Centro do Mundo, em 18 de novembro, em Altamira. Ao seu lado, Mitã Xipaya, jovem liderança indígena.LILO CLARETO

Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como “consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:

“Meu nome é Juma Xipaya. Eu fico pensando o que vocês pensam quando muitas vezes se contrapõem aos nossos discursos, às nossas lutas. Parece que somos inimigos de vocês. Só quero lembrar vocês que, em momento algum, nós falamos que vocês são nossos inimigos ou que nós somos inimigos de vocês. Nós defendemos a vida, nós defendemos a floresta. E se vocês dizem que a Amazônia é do Brasil, por que vocês não estão lutando para defender a Amazônia?

Toda essa produção e esse desenvolvimento que vocês pensam são para os brasileiros ou é para o estrangeiro? Então que discurso é este que vocês pregam que a Amazônia é do Brasil, sendo que vocês não sabem a importância do que a Amazônia significa pra nós, vocês não sabem o valor da Amazônia? Vocês não são dignos para dizer isso. Sabem por quê? Vocês não sabem o que é perder um filho, vocês não sabem o que é ter as casas invadidas, vocês não sabem o que é ser expulso de terras. Respeite, respeite, respeite. Respeite a minha fala.

Vocês devem nos ouvir. Vocês invadem as nossas terras, vocês entregam o nosso minério, vocês acabam com a nossa vida, e não querem ouvir a nossa voz. Respeitem. Respeitem a Amazônia, respeitem os nosso povos que morrem todos os dias, que têm mulheres todos os dias violentadas, que têm indígenas com mãos decepadas por defenderem as suas terras. Nós defendemos o Brasil. Nós defendemos a Amazônia com nossa própria vida há séculos!

O dever de defender a Amazônia não é só porque nós, indígenas, moramos nas nossas terras. O mundo tem o dever, tem a obrigação de defender a Amazônia, porque é daqui que tiram todas as nossas riquezas e deixam somente as mazelas, as doenças, as tristezas, os conflitos.

Qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?

Desrespeito é vocês virem aqui gritar, interromper a nossa fala. Se estão aqui para dialogar, então respeitem cada um. Não agridam, não cometam violência, porque eu não estou aqui agredindo vocês. Eu estou defendendo nossos direitos, o direito de existência, o direito de indígenas. Nós também somos donos, até muito mais do que vocês. O Xingu, a Amazônia, todos os seres que vocês não conseguem ver nem respeitar, sabem por quê? Porque vocês não são ligados à terra, vocês não sabem como é a conexão com a mãe natureza. Porque qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?

Que filhos são vocês? Que brasileiros são vocês? Eu tenho dó. Não de vocês. Eu tenho dó das futuras gerações. Dos filhos e netos de vocês. Vocês não têm o direito de acabar com a nossa futura geração. A Amazônia e o Brasil não são só de vocês. São também nossos. No mínimo, vocês têm que ter respeito e aprender a conviver”.

Raoni pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar, como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada exatamente agora.

Apesar das ilusões que todo povo alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação. Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses acima inclusive do futuro dos próprios filhos.

A riqueza da Amazônia é a sua imensa biodiversidade e a capacidade da floresta de, como um gigantesco coração, bombear água para a atmosfera. Sem essas duas riquezas articuladas, a espécie humana, além de muitas outras, estará condenada nos próximos anos e décadas a uma existência hostil num planeta superaquecido. Como lembra o cientista da Terra Antonio Nobre, a floresta inteira lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. É o que se chama de rios voadores. Neste caso, um volume maior do que o Amazonas ao desaguar no Atlântico é lançado sobre nossas cabeças todos os dias. Cada árvore grande da floresta lança mil litros de água por dia na atmosfera, pela transpiração. É essa sinapse que cada um precisa completar na sua cabeça.

A qualquer hora que qualquer pessoa pegar o carro e entrar na Transamazônica, especialmente à noite, mas também de dia, vai encontrar caminhões cheios de toras na carroceria. Na região de Altamira, a maioria delas foi arrancada da terra indígena Cachoeira Seca, uma das mais invadidas e desmatadas do país desde a construção de Belo Monte. Foi isso o que os ativistas do Fridays For Future e do Extinction Rebellion viram ao viajar à Terra do Meio. Os caminhões de toras passavam ao lado do microônibus dos participantes em pleno dia. Para os habitantes locais, é uma cena corriqueira. Para os ativistas europeus, foi um choque.

Os caminhões com toras são corriqueiros na Transamazônica e estradas vicinais, a maioria deles vindos da Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das mais invadidas e desmatadas do Brasil.
Os caminhões com toras são corriqueiros na Transamazônica e estradas vicinais, a maioria deles vindos da Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das mais invadidas e desmatadas do Brasil.LILO CLARETO

O cálculo que precisa ser feito é que cada uma daquelas toras deixou de colocar mil litros diários de água na atmosfera quando era uma árvore viva, em pé na floresta. Com cada árvore que tomba morrem milhares de outros seres vivos que se conectavam à sua vida e produziam outras vidas no seu entorno. Sem compreender a dimensão do assassinato, é difícil compreender a destruição da floresta. O planeta é orgânico. Cada morte gera uma cadeia de acontecimentos. Alguns visíveis, a maioria invisíveis. Ao final do encontro em Altamira, um estudante comentaria, visivelmente abalado: “Quando falam na floresta os indígenas doem, né? Eles não estão falando de outra coisa, fora deles, mas da mesma coisa. Eles são floresta. Só entendi isso agora”.

Indígenas, quilombolas e ribeirinhos protegem a Amazônia com o próprio corpo, fazendo dele uma barreira entre a floresta e os que querem destruí-la. Diferentemente do que aconteceu no evento, onde depois de provocar confusão, fazendeiros e grileiros foram se retirando porque derrotados no seu objetivo de silenciar as vozes, lideranças da floresta morrem no massacre cotidiano no interior da floresta, lá onde não há câmeras para registrar os crimes. Também são ameaçados e/ou morrem agricultores familiares, como acontece hoje em Anapu, num número muito mais elevado do que no ano do assassinato de Dorothy Stang. A sociedade brasileira precisa decidir de que lado está e proteger quem a protege.

Apenas alguns dias depois do encontro Amazônia Centro do Mundo, em 25 de novembro, a Subcomissão Temporária da Usina de Belo Monte do Senado foi a Altamira para “fiscalizar” a hidrelétrica e realizar uma “reunião técnica”. A imprensa, porém, não pôde acompanhar a “vistoria” pela manhã. À tarde, na reunião aberta ao público, as ONGs viraram alvo. O senador Lucas Barreto (PSD) afirmou explicitamente que recomendaria a inclusão do Instituto Socioambiental, uma das organizações mais atuantes da região na defesa da floresta e de seus povos, na “CPI das ONGs”. O antropólogo da banda podre perguntou então se a CPI estava garantida para o próximo ano. E o senador confirmou. Comemorações.

A ofensiva para eliminar os “entraves” para converter a floresta de todos em fazenda de poucos está desenhada e já foi colocada em curso. A ONG Saúde e Alegria pode ser só a primeira vítima. Parte da imprensa tem colaborado com o método, ao divulgar prisões sem verificar o contexto nem fazer investigação própria. Quando alguém é preso no Brasil, o estigma gruda na pele, a condenação pública precede todo o ritual legal. Os agentes de segurança e da justiça abusam do poder para promover linchamentos. E é exatamente este o objetivo. A suspeição lançada sobre pessoas e organizações pode durar para sempre, como a história já mostrou.

É absolutamente necessário que a sociedade, autoridades e instituições repudiem as evocações do AI-5, como feitas por Paulo Guedes. Mas, junto com isso, é preciso também entender que o autoritarismo está se infiltrando sem papéis e sem documentos com uma velocidade inédita na Amazônia e nas periferias urbanas. Esta é a estratégia deste Governo barulhento que, desde que assumiu, controla o noticiário e leva a comoção pública para onde quer.

No dia 25, atingidos por Belo Monte compareceram ao Centro de Convenções de Altamira. Estas famílias moravam no Bairro Independente I e ainda não foram reassentadas. A maioria é ligada ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que tem importante atuação na região. Antes de os senadores entrarem para a reunião pública, acompanhados de ruralistas e da direção da Norte Energia, dois policiais militares ostensivamente armados atravessaram o salão para também fazer uma vistoria.

A cena que ali se desenrolou é incompatível com a democracia. Eles e suas armas paravam diante de cada pessoa e as obrigavam a mostrar seus cartazes de protesto. É assim que se institui o AI-5 sem nenhum documento, assinatura ou anúncio oficial.

PM do Pará faz vistoria nos cartazes de atingidos por Belo Monte em evento do Senado no Centro de Convenções de Altamira, em 25 de novembro.
PM do Pará faz vistoria nos cartazes de atingidos por Belo Monte em evento do Senado no Centro de Convenções de Altamira, em 25 de novembro.EL PAÍS

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Congresso em foco: Polêmica. Cristovam faz inventário dos erros da esquerda e do centro que levaram Bolsonaro ao poder

  

Outra consequência foi o fracasso na tentativa de se reeleger em 2018, pleito em que derrotá-lo nas urnas era uma das tarefas prioritárias de grande parte de uma militância petista que começou a afrontar Cristovam antes mesmo de ele anunciar o voto pró-impeachment.  Tais questões, de caráter mais pessoal, não aparecem no livro Por que falhamos, que será lançado na quinta-feira (5) e ao qual o Congresso em Foco teve acesso em primeira mão. Ali, esse pernambucano de Recife, hoje com 75 anos, faz as vezes de analista e pensador. Propõe um polêmico inventário dos erros dos governos que se sucederam entre 1992 e 2018, isto é, de Itamar Franco a Michel Temer. Governos, vale lembrar, ligados a partidos (sobretudo, MDB, PT e PSDB) e personalidades de alguma maneira comprometidas com os ideais de democracia e justiça social da Constituição de 1988, aquela mesma que Jair Bolsonaro e vários dos seus seguidores não cansam de desdenhar.

Credenciais intelectuais não faltam a Cristovam, discorde-se ou não de suas reflexões. Formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Pernambuco, doutorou-se depois em Economia pela prestigiada Universidade de Sorbonne, em Paris. Além de governador, senador por dois mandatos e reitor da UnB, trabalhou durante seis anos no Banco Interamericano de Desenvolvimento e foi ministro da Educação de Lula, que o demitiu por telefone. Por que falhamos é o seu 27º livro. Lançado pela Tema Editorial, o livro será lançado inicialmente apenas em versão digital, e com uma novidade: a partir de quinta-feira (5) estará disponível gratuitamente no site da editora.

É livro denso, mas de meras 54 páginas, redigidas sempre na primeira pessoa do plural. O ex-senador se inclui entre os responsáveis pelos equívocos cometidos. Para Cristovam, a eleição de Bolsonaro sairá cara, dado o perfil do presidente eleito: “Não tinha programa nem partido e representava uma visão sectária e retrógada – posições que pareciam superadas desde a redemocratização –, além de não expressar qualquer experiência gerencial”. Mas o questionamento sobre os erros é a parte que lhe interessa  e que explora. Numa referência indireta a Lula, um dos seus alvos é o “culto à personalidade”. Nas suas palavras: “A amarra aos líderes foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018. Confundimos Estado com governo, governo com partido, partido com líder. Para proteger nossos líderes, subestimamos a corrupção diante da qual fomos omissos”.

Traremos um pouco de spoilers aqui listando os dez dos 24 erros apontados por Cristovam Buarque:

  1. Legamos um país sem coesão e sem rumo 

“Não nos unimos por um programa que fosse além da democracia e que servisse para orientar o Brasil em novo rumo civilizatório. No lugar de reunirmos forças para fazer um país progressista, preferimos nos dividir em partidos, siglas, sindicatos, corporações – cada um querendo parte do butim que a nova democracia ofereceu aos que apresentavam mais força eleitoral ou capacidade de pressão. (...) Passamos 26 anos fazendo oposição entre nós, uns aos outros. Somente depois de retirados do poder, ministros de diversas pastas nos governos Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer se reuniram para manifestar posições contrárias ao adversário que nos derrotou”. 

  1. Mantivemos o descompasso do Brasil com o progresso mundial 

“Jogamos fora a chance de cortar as correntes que nos amarram ao passado como uma sina histórica. Fomos ‘democratizadores’, mantendo um país injusto, ineficiente e insustentável. Não estivemos à altura como promotores de uma nação progressista, eficiente, justa e sustentável. Desperdiçamos mais uma vez a chance de o Brasil ficar em sintonia com o futuro. (...) Nós tomamos o poder e durante 26 anos não entendemos a revolução em marcha no planeta”. 

  1. Passamos ao largo da utopia educacionista

“Continuamos a falar no velho e relegado direito à educação, sem ver e sem defender que a educação com qualidade é mais do que um direito individual, é o vetor do progresso da eficiência econômica e da justiça social. (...) Passamos ao largo da percepção de que a globalização da economia e das informações simultâneas, os limites ecológicos ao crescimento, a robótica e automação, além do esgotamento do desenvolvimentismo econômico e do socialismo real, levaram ao fracasso das utopias que nos orientavam. Não percebemos que já não é mais possível manipular a economia pela política, sem levar em conta a realidade da globalização e da ecologia, nem é possível impor uma igualdade plena de renda e salário. Uma nova utopia, que não fomos capazes de visualizar, precisa despolitizar a economia para que ela seja eficiente, subordinar a produção e o consumo às restrições ecológicas, tolerar a desigualdade dentro de parâmetros e oferecer a mesma chance para que todos possam ascender socialmente, conforme o próprio talento”. 

  1. Ficamos prisioneiros do populismo e do corporativismo 

“Por falta de visão de uma utopia, caímos no corporativismo e no oportunismo, passando a organizar nossas bandeiras em busca de resultados eleitorais imediatos, mesmo que isso exigisse o aparelhamento e a tolerância com a corrupção na gestão da máquina do Estado e a irresponsabilidade nas contas públicas. Concentramos nossa função política em atender as reivindicações de sindicatos de categorias profissionais, os interesses e as propostas de segmentos identitários e de organizações não governamentais”. 

  1. Desprezamos o ‘espírito do tempo’

“Não vimos que a globalização, as comunicações instantâneas, globais e manipuláveis, e as novas tecnologias fizeram da terra um planeta dividido em um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos, com basicamente as mesmas características de renda e consumo, atendimento médico e escolaridade. Até mesmo com as mesmas ideias e gostos estéticos, seja qual for o país geográfico do habitante. No outro lado, temos um Arquipélago Mundial de Pobres com padrões culturais sociais e econômicos diferenciados, solidários apenas pela escassez de bens e serviços essenciais que caracteriza suas vidas, também independente do país geográfico onde vivam. Cada país é cortado socialmente por uma cortina de exclusão, a Cortina de Ouro”.

  1. Permitimos o domínio da corrupção 

“Nosso erro mais visível para a opinião pública foi cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos, trocando prioridades básicas, como escolas por estádios, para atender ao gosto imediatista e eleitoral da sociedade e também para receber propinas nessas construções”.

  1. Repudiamos reformas 

“Contentamo-nos com o salto democrático representado pela Constituição, que alguns de nós nem assinamos, mas não fizemos as reformas que dariam o salto progressista que a sociedade espera e carece. Não enfrentamos a necessária reforma do Estado. Ficamos sem fazer a reforma política, sem a qual o Estado brasileiro mantém seus desperdícios, seus privilégios, suas brechas corruptivas. Mantém também seu distanciamento em relação ao povo, seu sistema eleitoral manipulável e mercantil, sua promiscuidade entre poderes – juízes, políticos, empresários, líderes sindicais –, sua justiça ineficiente e protetora dos ricos. Estado gigante, corrupto, ineficiente.

(...) Mesmo as tímidas, mas positivas, reformas do ensino médio durante o governo Temer foram criticadas e enfrentadas por movimentos conservadores de parte de nossos militantes, sem qualquer justificativa progressista. Por acomodamento e submissão às corporações universitárias, oferecemos recursos financeiros, mas não nos propusemos a reformar as estruturas acadêmicas, sem o que a universidade brasileira não participará da construção da sociedade do conhecimento no século 21. A consequência é que até os grandes feitos educacionais, como o aumento no número de vagas no ensino superior e em cursos profissionalizantes, foram anulados por falta de avanços no número e na qualidade dos que terminam o ensino fundamental e o ensino médio. 

(...) Apesar da positiva reforma da responsabilidade fiscal no segundo mandato de FHC, não enfrentamos a necessidade de fazer as reformas que garantiriam o equilíbrio das contas públicas, devastadas pelo descontrolado aumento do custo da máquina do Estado determinado pela Constituição”.

  1. Valorizamos mais o estatal do que o público 

“Confundimos estatal com público e até hoje temos que explicar por que muitos de nós fomos contra a privatização nas telecomunicações, que permitiu a disseminação do direito a um telefone, antes um privilégio de pouquíssimos brasileiros ricos. (...) Ignoramos o fato de que a estatização não criou a oferta de serviços com qualidade que a sociedade precisava, especialmente para os pobres, nem implantou a infraestrutura econômica nas dimensões e eficiências desejadas. Assistimos passivamente ao Estado ser apropriado por empreiteiras, políticos, sindicatos e servidores que o usam para usufruírem poder e vantagens patrimonialistas. Há quase 100 anos o Brasil mantém custosas empresas estatais de saneamento, e mais da metade de nossa população continua a viver no meio de lixo, urina e fezes. Mesmo assim, resistimos à alternativa de usar empresas privadas para executarem e administrar projetos sanitários em nossas cidades, ainda que sob regulação pública”. 

  1. Ignoramos que justiça social depende de economia sólida 

“Os nossos governos Itamar, FHC e Lula fizeram esforços para assegurar uma economia eficiente, mas sofreram pressões desestabilizadoras de parte de nossos partidos e sindicatos, que mantinham a antiga visão de que os gastos públicos seriam o caminho para atender aos interesses dos trabalhadores do setor moderno e oferecer assistência aos pobres, mesmo que isso fosse feito às custas do endividamento público e privado. Aceitamos a ilusão de que o Tesouro Nacional seria como um chapéu de mágico, com disponibilidade ilimitada de recursos financeiros. (...) Por não entendermos a realidade, não fazermos as contas, não acreditarmos na aritmética ou simplesmente por oportunismo eleitoral, muitos de nós continuamos a cometer esses erros, agora na oposição.”

  1. Adotamos o culto à personalidade 

“A amarra aos líderes foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018. A recusa da realidade e o culto à personalidade terminaram por aprisionar nossa linguagem, nossas análises, táticas e estratégias, sem metas e propostas para o longo prazo. Confundimos Estado com governo, governo com partido, partido com líder. Para proteger nossos líderes, subestimamos a corrupção diante da qual fomos omissos, sem acusar, julgar, punir nem ao menos criticar os responsáveis pela cobrança de propinas, depredação de estatais e de fundos de pensões. Não combatemos as prioridades equivocadas. Continuamos a defender que prisões de empresários aliados eram o resultado de manipulação política contra nós, os democratas-progressistas, ignorando que a Justiça julgou e prendeu dezenas de políticos e homens de negócio das mais diversas vertentes políticas.”