Day: novembro 3, 2019

João Domingos: Em estado de autoflagelo

Se o País tivesse paz na política, poderia estar numa situação muito melhor

Na tarde de ontem, o presidente Jair Bolsonaro usou a conta pessoal que tem no Twitter para fazer uma comparação entre o primeiro ano de seu governo e o primeiro ano do segundo governo de Dilma Rousseff (2015). Eis a tabela: inflação no governo Dilma, 10,67%, no de Bolsonaro, 3%; juros com Dilma, 14%, com Bolsonaro, 5%; índice da Bolsa no governo Dilma, 38 mil, no governo de Bolsonaro, 108 mil pontos; risco-país sob Dilma, 533 pontos, sob Bolsonaro, 117; PIB de Dilma, -3,8%, de Bolsonaro, 0,8%. Goleada para Bolsonaro.

Certamente seus partidários mais fiéis vão dizer que é um placar semelhante ao 7 a 1 aplicado pela seleção de futebol da Alemanha na seleção do Brasil na Copa da Fifa de 2014, competição que Dilma chamou de “Copa das Copas”, e que para o Brasil foi o vexame dos vexames.

Bolsonaro não disse, mas isso ninguém costuma mesmo dizer, é que os índices econômicos tão diferentes para melhor foram conseguidos por vários motivos, com destaque para dois. O primeiro, é que ele recebeu do presidente Michel Temer uma economia já em recuperação, lenta, mas não mais em depressão. O segundo é que sua equipe econômica trabalha duro e sem interferências mais sérias. Na economia, nem o presidente nem seus filhos criam crises como criam na política. Além do mais, o Congresso decidiu parar de fazer marolas, de votar pautas-bomba. Abraçou as reformas econômicas, passou confiança para o mercado, permitiu que investidores pensem no Brasil como um bom lugar para pôr o dinheiro que têm.

Imagina o cenário que o presidente poderia mostrar no Twitter se o País tivesse um mínimo de paz na política, se o presidente não criasse uma crise nova a todo momento, se os filhos decidissem ser só o que são: filhos do presidente da República, um envolvido com o trabalho no Senado, outro com o trabalho na liderança do PSL e na presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e outro na sua função de vereador no Rio de Janeiro, fiscalizando o que faz a administração de Marcelo Crivella. E não pensando que, por serem filhos do presidente, podem também ocupar a Presidência de vez em quando. E nessa função à qual não têm direito, pensar em uma guerra contra inimigos imaginários, planejar a assinatura de um novo AI-5 e jogar a Nação e seu povo de volta a uma ditadura que ninguém quer.

Sem as crises políticas, Bolsonaro poderia usar o Twitter não só para fazer uma comparação entre seu governo e o de Dilma. Poderia também dizer que em seu governo não se registrou, até agora, nenhuma crise política, ao contrário do que ocorreu no de Dilma em 2015. Naquele ano, em novembro, aliados fugiam dela como se ela fosse o diabo. E dali a um mês seria aberto um processo de impeachment.

O problema é que Bolsonaro não consegue usar o Twitter só para enaltecer as coisas boas que seu governo tem feito, e que até permitiram uma recuperaçãozinha do emprego. Vai à rede social para agredir instituições que são os pilares do estado democrático de direito, como fez com o STF, ao compará-lo a uma hiena que tenta destruir o leão-Bolsonaro. E os filhos, um aproveita que o pai está fazendo uma cirurgia para dizer que o regime democrático não permite mudanças rápidas, insinuando que as coisas só se resolvem numa ditadura; o outro dá uma entrevista para convocar fantasmas e falar que pode ser necessário editar um novo AI-5. Isso contra um adversário hipotético, incapaz de chamar uma manifestação de rua contra a reforma da Previdência. E que ainda reúne os cacos do desastre em que se meteu ao confundir o público com o privado, ao criar uma máquina de corrupção nas estatais. O que permitiu a eleição de Bolsonaro.


Demétrio Magnoli: Esses liberais que adoram o brexit

Liberais britânicos giraram 180 graus e se transformaram em seita anti-Europa

Um Reino Unido atordoado vai às urnas em dezembro. Boris Johnson, o primeiro-ministro conservador, definiu sua campanha como um levante do “povo”, pelo brexit, contra a “elite” que impede uma ruptura radical com a União Europeia (UE).

Os liberais britânicos —isto é, a maioria do Partido Conservador e o Partido do Brexit, de Nigel Farage— transformaram-se numa seita anti-Europa. É mais um sintoma da degradação do pensamento liberal.

Os liberais britânicos giraram 180 graus. Entre 1985 e 1994, quando o francês Jacques Delors conduziu as negociações que concluíram a arquitetura do Mercado Único Europeu, eles ocuparam a linha de frente na batalha contra as resistências protecionistas nacionais. Hoje, renegam o que fizeram, entrincheirando-se num nacionalismo de nítida coloração populista.

No Foro da Liberdade, meses atrás, escutei as razões de um fanático do brexit, o economista Andy Duncan. Ele acusava a então primeira-ministra, Theresa May, e o líder opositor Jeremy Corbyn de subserviência à “elite europeia”. E, desafiando o que sugere o registro histórico, assegurava que Margaret Thatcher teria completado sem demora o serviço do brexit.

Tive, então, que recordar à plateia brasileira o primeiro plebiscito sobre o brexit, realizado em 1975, quando a conservadora Thatcher defendeu a adesão à Comunidade Europeia e o trabalhista Corbyn adotou posição contrária.

O economista ultraliberal reproduziu os discursos de campanha de Farage, que classificou como seu “herói”. Estados grandes representariam, invariavelmente, ameaças às liberdades dos cidadãos. A Europa ficaria melhor se fragmentada em microestados como Andorra, Liechtenstein ou Monaco. A UE seria um superestado opressor, uma burocracia “globalista” determinada a suprimir as liberdades britânicas.

Duncan situa-se numa franja extrema do espectro partidário, mas seus argumentos esclarecem a gramática política que impulsiona o brexit. A “liberdade” dos modelares microestados de Duncan é a liberdade de circundar impostos: os três são paraísos fiscais.

O brexit veicula a utopia reacionária de rebaixar os padrões sociais e ambientais britânicos, pela ruptura com as regras comuns europeias. Na sua nova encarnação, os liberais sonham com uma Inglaterra bucaneira: um Chipre com armas nucleares.

Os grandes Estados europeus são diversos e relativamente abertos à imigração. A campanha do brexit concentrou-se na ideia de retomar o controle das fronteiras, abolindo o livre trânsito de cidadãos europeus e erguendo uma muralha frente aos fluxos imigratórios. A “liberdade” de Farage e Johnson é a liberdade de definir a nação à base do sangue. O brexit veicula a utopia nativista de um retorno aos tempos dourados de uma Pequena Inglaterra exclusivamente branca e anglicana.

A proteção das liberdades públicas e políticas foi a mola que, lá atrás, quando assentava a poeira da guerra mundial, impulsionou o projeto europeu. Na origem da UE encontram-se os imperativos de evitar o ressurgimento do nacionalismo alemão e de traçar uma fronteira geopolítica diante do bloco soviético.

A Europa fragmentária idealizada pelos maníacos do brexit é o cenário estratégico perfeito para a Rússia, o maior dos Estados europeus. Em 2014, Farage nomeou Vladimir Putin como “o líder mundial que mais admiro”. Há um claro motivo político para o voto pró-europeu de Thatcher em 1975.

O Reino Unido navega rumo às águas turbulentas do brexit, um ato voluntário de autoagressão poucas vezes visto na história das nações. Os liberais convertidos ao nacionalismo xenófobo pilotam o navio, mas partilham a responsabilidade com os trabalhistas, que se recusaram a tentar mudar o curso. É que Corbyn, o líder esquerdista do partido, votou pelo brexit em 1975 por enxergar o projeto europeu como uma monstruosidade inventada pelos liberais...

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.