Day: outubro 16, 2019

‘Produtoras brasileiras devem se tornar independentes’, afirma Lilia Lustosa à Política Democrática online

Doutora e mestre em história e estética de cinema pela Universidad de Lausanne critica medidas de Jair Bolsonaro

Decisão do presidente Jair Bolsonaro, determinando que todas as produções candidatas a receber financiamentos do governo deverão passar doravante por um “filtro”, mostra que o mar cinematográfico brasileiro não está para peixe. É com essas palavras que a doutora e mestre em história e estética de cinema pela Universidad de Lausanne Lilia Lustosa inicia sua crítica à medida do governo, em artigo que ela produziu para a revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

» Acesse aqui a 11 edição da revista Política Democrática online

A FAP é vinculada ao partido político Cidadania 23. No artigo, Lilia destaca que nem a onda de prêmios importantes recebidos por filmes brasileiros neste ano em Cannes serviu para acalmar a tempestade que se vinha formando no meio cinematográfico do país. “Nem Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que levou o prêmio máximo do júri, nem A vida invisível de Eurídice Gusmão (2019), de Karim Aïnouz, ganhador do prêmio Un Certain Regard, foram capazes de diminuir a vontade do presidente Jair Bolsonaro de controlar o conteúdo do que é financiado pelos cofres públicos”, lamenta a autora.

De acordo com Lilia, o recente caso da suspensão do edital de chamamento a projetos de séries para a TV Pública comprova não se tratar apenas de uma fala retórica de nosso presidente. “Com linha de crédito do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e participação da Ancine e da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o edital tinha entre as categorias de investimento uma dedicada à diversidade, com temas LGBT”, afirma.

Lilia diz, ainda, que, para o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, responsável pelo Conselho Superior de Cinema (CSC), “o ‘filtro’ deve ser principalmente financeiro”. Segundo ele, a atual política pública de incentivo ao cinema não tem medido os resultados obtidos, gerando obras sem relevância para a economia do país. “Até que aí ele pode ter um ponto. É preciso de fato preparar de uma vez por todas o terreno para que as produtoras brasileiras se tornem independentes”, destaca.

Mas, para isso, segundo ela, é preciso, antes de mais nada, que haja público para o filme brasileiro, o que implica redução do preço das entradas para produções nacionais e, sobretudo, aprimoramento da distribuição dessas obras, que, até hoje, têm de se espremer nas brechas das programações dos Multiplex, dominados pelos filmes norte-americanos. “Questão antiga, tão batalhada pelos cinemanovistas nos anos 60, levada a sério pela Embrafilme nos anos 70/80, interrompida nos anos 90 pelo Governo Collor, e jamais resolvida por governo algum”.

 

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Luiz Carlos Azedo: Os dissidentes da esquerda

“Acabaram como estranhos no ninho, pois tanto o PDT como o PSB são partidos da esquerda tradicional, com uma lógica de funcionamento que não acolhe as ideias do grupo”

Sete parlamentares do PDT e do PSB protocolaram, ontem, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um processo de reivindicação de mandato. São dissidentes programáticos das respectivas legendas, porque votaram a favor da reforma da Previdência durante a tramitação da matéria na Câmara dos Deputados. Como a legislação determina que o mandato fique com o partido, caso o parlamentar deixe a legenda fora da janela temporária, mas prevê exceções, como a perseguição política, é exatamente este quesito que alegam para mudar de partindo.

Tábata Amaral (SP), Marlon Santos (RS), Flávio Nogueira (PI) e Gil Cutrim (MA), do PDT, e Rodrigo Coelho (SC), Jefferson Campos (SP) e Felipe Rigoni (ES), do PSB, fazem parte de uma nova esquerda que surge na Câmara, democrática e reformista. Tábata, de 25 anos, é uma jovem da periferia de São Paulo que foi estudar ciências sociais em Harvard e voltou militante dos movimentos sociais, principalmente na Educação. Com um discurso político liberal, é a principal estrela do grupo. Logo ao chegar à Câmara, notabilizou-se por interpelar o então ministro da Educação, Ricardo Vélez, numa audiência pública, mas logo entrou em rota de colisão com o PDT, herdeiro do velho trabalhismo de Leonel Brizola.

Foi suspensa pelo comando do partido, com a previsão de que seu caso de infidelidade fosse julgado internamente em dois meses. “Já se passaram mais de três. Não tenho mais diálogo com o PDT. Enviei uma carta ao presidente (Carlos) Lupi pedindo que fosse julgada. Sou ignorada. Não estou podendo atuar de forma efetiva na Câmara, não sou indicada para comissões, nada. Estou suspensa sem previsão de julgamento. É perseguição política”, reclama.

Cego desde os 15 anos, o capixaba Felipe Rigoni é outro ponto fora da curva. Formado em engenharia de produção na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com mestrado em Oxford, na Inglaterra, aos 27 anos também pressionou o ex-ministro Ricardo Vélez por propostas concretas na pasta. Brilhou ao discursar pela primeira vez da tribuna da Câmara. É o primeiro parlamentar com deficiência visual total na Casa.

Quando se filiou ao PSB, havia assinado uma carta conjunta que lhe garantia independência, mas esse acordo não foi cumprido. Segundo ele, o PSB fechou questão contra a proposta da Previdência enviada pelo governo. Depois das modificações no texto feitas durante a tramitação na Câmara, Rigoni decidiu mudar de posição: “Eu tinha minhas ressalvas contra a proposta inicial enviada pelo governo, mas, depois das alterações na Câmara, a reforma ficou muito mais justa.”

Novo bloco
Os sete deputados fazem parte de um movimento de renovação política que surgiu a partir das manifestações de 2013, desaguando na campanha do impeachment de Dilma Rousseff e no tsunami eleitoral que varreu o Congresso, além de eleger o presidente Jair Bolsonaro. Escolheram seus respectivos partidos por certa afinidade política e muita conveniência eleitoral, mas nunca esconderam o desejo de realizar mandatos diferenciados do ponto de vista da atuação parlamentar. Acabaram como estranhos no ninho, pois tanto o PDT como o PSB são partidos da esquerda tradicional, com uma lógica de funcionamento que não acolhe as ideias do grupo.

O Novo, a Rede e o Cidadania disputarão o passe dos dissidentes, mas nenhum dos parlamentares abre o jogo do destino que pretendem tomar. É possível que façam isso em grupo, mas há uma variável nesse processo muito importante: pretendem escolher uma legenda que tenha regras de funcionamento mais democráticas e transparentes. Tábata quer conversar com todas as legendas, mas pleiteia liberdade para defender sua visão de mundo, regras de compliance e prévias para escolher candidatos.

De certa forma, todos são potenciais candidatos a prefeito de suas cidades, pois obtiveram votação para isso, mas quem conhece o funcionamento dos partidos sabe que existe fila para quase tudo. A precedência é uma regra do jogo que precisa ser respeitada. Se essa for a pretensão de alguns, influenciará a escolha da legenda de destino. Ao recorrer à Justiça, os dissidentes também estão estabelecendo um novo paradigma de relacionamento dos parlamentares com os caciques dos partidos.

Caso o pleito seja aceito pelo TSE, se abrirá uma janela de oportunidade para outros insatisfeitos. Tanto no PDT como no PSB, dirigentes atacam os dissidentes, acusando-os de estarem migrando para a direita. Na verdade, está ocorrendo um processo de formação de um novo bloco de centro-esquerda na Câmara, com parlamentares de diversos partidos, cuja influência nas decisões da Casa vem aumentando.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-dissidentes-da-esquerday/


El País: A operação dos irmãos Bolsonaro para blindar Carlos e assessor do Planalto na CPI das ‘fake news’

Parlamentares filhos do presidente reforçam presença do PSL em comissão, mas temem derrota que pode expor estrategistas digitais do Planalto

De um vereador do Rio de Janeiro e herdeiro presidencial, o vereador Carlos Bolsonaro, a uma pré-candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos, Elizabeth Warren. De aliados diretos de Jair Bolsonaro (PSL), como o assessor internacional Filipe Martins e o secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, à ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News iniciou seus trabalhos há pouco mais de um mês e demonstra que será palco de intenso embate político. De um lado, estão deputados ligados a Bolsonaro, incluindo os dois filhos do presidente no Congresso, que tentam travar a apuração por meio do PSL —tudo isso em meio à guerra interna do partido. De outro, petistas e seus aliados que querem causar o máximo de constrangimento ao Palácio do Planalto.

“A CPMI está em um momento de inflexão sobre se ela se realizará ou não. O PSL não quer viabilizar a comissão. Parece que o partido tem medo desse tipo de investigação”, afirmou a relatora do colegiado, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA). Até agora, nas quatro sessões em que funcionou, o PSL obstruiu os trabalhos. Na sequência, houve uma sessão cancelada e não há previsão de quando outra reunião ocorrerá.

O PSL tem 8 das 32 posições na CPMI. Uma vaga a mais que PT e MDB, individualmente. A preocupação dos governistas é pela tendência de derrota. No caso das convocatórias, que tornam obrigatória o depoimento ante a comissão, é necessária a maioria simples do colegiado.  Até o momento, 107 requerimentos de convocação, que são obrigatórios, e convites, que são voluntários, foram aprovados. Outros 96 ainda dependem de aprovação. Os últimos requerimentos que chamaram atenção são um que tenta convocar Filipe Martins e outro que quer chamar a senadora Warren.

No caso de Martins, a ideia do autor do requerimento de convocação, o deputado Rui Falcão (PT-SP), é tentar provar que ele é um dos principais membros de "uma milícia" que atua nas redes sociais a favor de Bolsonaro. O petista se embasou em uma reportagem da revista Crusoé. Em resposta pela sua conta no Twitter, o assessor presidencial afirmou que há uma tentativa de criminalizar Bolsonaro e seus defensores, ainda conclamou os apoiadores do Governo a irem pro confronto. “Vamos pro pau!”

Os opositores também ameaçam chamar o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ), que é o responsável pelas redes sociais de seu pai. Enquanto que os governistas já apresentaram requerimentos para que Dilma Rousseff e alguns de seus antigos assessores também deponham. Já a tentativa de convocar Warren tem impacto mais simbólico. A iniciativa é da relatora da CPI, Lídice da Mata, que deseja que a democrata explique qual é a sua proposta para desmembrar as gigantes de tecnologia (Facebook, Google, YouTube...), que ela entende serem prejudiciais à concorrência. A senadora americana publicou recentemente uma propaganda falsa no Facebook para provar que a política de publicidade deles favorece a difusão de fake news.

Filhos de Bolsonaro na CPI das 'Fake News'

Para ajudar na blindagem do Governo, os dois filhos do presidente com assentos no parlamento foram convocados pelo PSL para a CPMI. Acostumado a operar apenas nos bastidores, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) foi o primeiro a compor o grupo. Enquanto que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) assumiu uma das vagas nesta terça-feira. Ambos querem evitar, principalmente a convocação do irmão vereador. Ele foi o estrategista da eleição presidencial de seu pai no ano passado. “Todos os atores envolvidos no processo eleitoral de 2018. Como o próprio presidente Bolsonaro diz que o Carlos foi o artífice da rede social dele, ele pode ser convocado”, avisou o presidente do colegiado, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA).

Se, de um lado o PSL quer se defender, do outro, os opositores querem aproveitar o espaço para expor as feridas de uma frágil base governista e, quem sabe, trazer da CPI um processo judicial/eleitoral contra o presidente —a investigação pelo uso irregular do WhatsApp na campanha, com o envio de mensagens em massa confirmado pelo aplicativo, anda a passos lentos no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). “Eles não querem que a gente chegue em investigações que vão mostrar o submundo desse processo de propagação de ódio e fake news”, afirmou o senador Humberto Costa (PT-PE).

Uma das parlamentares que tenta impedir o debate no colegiado, a deputada Carolina de Toni (PSL-SC), chamou o colegiado de CPI da Censura. “Está um circo armado para se montar um tribunal de exceção aqui para ser contra o presidente”, afirmou. Enquanto outra, Bia Kicis (PSL-DF) afirma que o desfecho dela pode ser “lamentável para a sociedade brasileira”.

Quem oficialmente não é nem de um lado nem de outro, diz estar assustado com a paralisação dos trabalhos e as seguidas tentativas de obstrução. “Fiquei absolutamente preocupado com o clima que está instalado na comissão, de disputa. Eu acho que investigar um tema como esse é de interesse de todos”, disse Elmar Nascimento, líder do DEM na Câmara.

Também deverão ser interrogados pelos parlamentares representantes do WhatsApp, do Telegram, do Facebook, Google, YouTube, Instagram e do site The Intercept, este responsável pela divulgação das notícias contrárias à Operação Lava Jato que ficaram batizadas de Vaza Jato. A previsão é que os trabalhos sejam retomados a partir da próxima semana. Para isso, contudo, será necessário haver um acordo entre as lideranças partidárias para que a CPMI passe a funcionar normalmente.


Monica De Bolle: Pobreza real, pobreza mental

Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental

O Nobel de Economia de 2019 foi concedido a três economistas que conduziram ao longo dos anos pesquisas de alto rigor científico para medir o impacto de diferentes políticas públicas na erradicação da pobreza. Como definiu um dos laureados, a economista Esther Duflo, segunda mulher a vencer o prêmio desde que foi criado pelo Banco Central da Suécia em 1968 e sua mais jovem vencedora, a pesquisa dos três tem por objetivo estudar de perto a vida das pessoas, não as recomendações teóricas de livros-texto. A partir da observação próxima em comunidades na África e na Índia, os três testaram os efeitos de diversas intervenções para melhorar as taxas de imunização infantis, o combate à malária, os incentivos à educação, além de diversas outras medidas.

Em muitos casos, os estudos conduzidos seguindo metodologia bastante utilizada pelas ciências médicas, conhecido como ensaio controlado randomizado, as descobertas foram surpreendentes e simples: ao contrário do que se pensa, não é necessário gastar muito dinheiro para aumentar as imunizações, combater a malária, ou elevar a escolaridade. O ensaio controlado randomizado consiste em selecionar aleatoriamente grupos que receberão a intervenção – no caso, a política pública – e grupos que não o receberão. A partir dessa seleção, aplica-se a política e analisam-se seus efeitos.

O estudo sobre a malária, por exemplo, consistiu em dar ao grupo selecionado mosquiteiros. Havia a dúvida se deveriam ser fornecidos de graça ou se as pessoas deveriam comprá-los. Afinal, se fossem dados de graça havia a possibilidade de que as pessoas não dessem aos mosquiteiros o devido valor, usando-os menos do que o desejável. Elaborou-se um sistema de vouchers: alguns davam 100% de desconto na compra, outros davam 50%, outros 20%, e por aí vai. Comparando os resultados tanto dos vouchers recebidos, quanto do grupo de controle que nada recebeu, foi possível constatar um aumento considerável do uso de mosquiteiros entre os que os obtiveram de graça, isto é, os com 100% de desconto.

Ao contrário do que se acreditava, isso não prejudicou o mercado de mosquiteiros, mas o beneficiou enormemente. Aqueles que agora tinham mosquiteiros em uma cama, passaram a comprá-los para todas tendo percebido o seu valor. Houve sensível redução nas taxas de infecção de malária e nas taxas de contágio. Para quem não entendeu a razão da pesquisa, inúmeros estudos mostram a relação entre malária e pobreza.

Os vencedores do Nobel, portanto, puseram em prática medidas para melhorar a vida das pessoas e revolucionaram a maneira como hoje se pensa e se adotam políticas sociais voltadas para o desenvolvimento econômico. Como disse Esther Duflo em entrevista concedida após vencer o prêmio, não é que haja falta de livros-texto e teorias sobre a redução da pobreza e o desenvolvimento econômico. Livros e teses abundam. O problema é que na maioria das vezes eles não trazem a pesquisa de campo, a inserção nas comunidades e na vida das pessoas, para justificar suas recomendações. Portanto, podem levar a equívocos e desperdícios.

A pesquisa científica de campo para reduzir a pobreza e os seus vários sucessos deveria ser comemorada, sobretudo em países onde ainda há muita pobreza, como é o caso do Brasil. Infelizmente, a reação nas redes sociais de gente que se identifica com a direita extrema retrógrada do País foi de condenar a premiação de diversas formas. Seja pela negação de que o Nobel de economia exista – o prêmio existe, ainda que não tenha sido originalmente estabelecido por Alfred Nobel – seja ao afirmar que a pobreza é um “estado natural” e que as políticas públicas para combatê-las são inúteis. Por certo, esse pensamento repercute não entre gente que sofra da pobreza real, material, mas de quem sofre de profunda pobreza intelectual. Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental. Quem sabe seja possível resgatar algumas cabeças da ignomínia que ocupa os espaços públicos. Quem sabe nada disso seja possível e o Brasil permaneça preso na sua terraplanice atual.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Vladimir Safatle: Falta uma oposição real no Brasil, que imponha outra agenda no debate público

Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito

Uma das mais astutas peças da engenharia política colocada em operação pela ditadura militar consistiu na produção de sua própria oposição. Dificilmente encontraremos uma ditadura que, logo ao ser implementada, não anulou toda a oposição, mas na verdade criou seu próprio partido de oposição. Ou seja, o MDB é um produto da ditadura, talvez seu produto mais impressionante. O que demonstrava como, desde o início, tratava-se de uma ditadura que não se via como uma operação de intervenção cirúrgica, mas como um movimento de reformulação profunda da vida nacional feito para durar mesmo depois do seu fim.

Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito”. Pois o poder se exerce não exatamente quando definimos as normas a serem seguidas. Ele se exerce principalmente quando definimos as margens, quando organizamos as posições e as formas de resistência que os descontentes poderão ocupar. Um poder perfeito é aquele que é, ao mesmo tempo, a norma e a resistência.

Assim, ao definir as condição de sua própria oposição, ou seja, ao construir o próprio ator que a sucederia depois de seu término, a ditadura brasileira encontrou uma maneira de fazer, da Nova República, apenas a ocasião de seu próprio desdobramento. Como se disse várias vezes antes, o MDB era sobretudo um modelo de paralisia, uma forma de travar as lutas e dinâmicas de conflitos sociais próprios à realidade brasileira. Esta paralisia acabou por levar a Nova República ao colapso e, ironia maior da história, ao restabelecimento de novos representantes do setor mais violento da ditadura militar.

Um processo similar está em curso atualmente, a saber, as forças em torno do governo, ou que um dia giraram em torno do governo, estão a construir sua própria oposição. Neste sentido, é digno de nota a maneira com que o espaço da oposição é atualmente ocupado, principalmente, por antigos aliados, por apoiadores ocasionais ou ainda por atores de espectros políticos próximos àquele assumido pelo governo. Isto é parte fundamental de uma operação de restrição e gestão do horizonte de debate nacional. Não por acaso, o discurso oposicionista começa a se configurar como um discurso de crítica à política ambiental, às “derrapadas” do governo, a sua “insensibilidade” para com setores historicamente violentados, mas que sempre termina por lembrar: “embora tudo isto ocorra, sua política econômica é boa”. Como se estivéssemos a ver a gestação de novos candidatos a gerentes de uma política econômica aparentemente consensual, a despeito de seus resultados catastróficos. Assim, da mesmo forma como em Aristóteles a atualidade é a situação atual mais a soma de seus possíveis, constrói-se paulatinamente horizonte dos possíveis deste atual governo.

Como a outra face necessária dessa moeda, vemos desenhar-se no Brasil um tipo de movimento que parece querer repetir o que se passou na Itália nas últimas décadas. Desde o fim da Segunda Guerra, a Itália despontou como um país de esquerda em ebulição. O maior partido comunista da Europa, movimentos autonomistas extremamente dinâmicos e contestadores, movimentos sociais múltiplos. No entanto, não há sequer sombra disto atualmente. Simplesmente não há mais esquerda italiana. O que aconteceu?

Se quisermos fazer a arqueologia de Bolsonaro chegaremos necessariamente a Silvio Berlusconi, certamente o primeiro da série de líderes populares de extrema-direita que dão o tom da política mundial. Quando Berlusconi emergiu, todo o resto do espectro político foi paulatinamente se configurando em enormes “frentes de resistência”. Ou seja, a política se resumiu a Berlusconi e as resistências a ele. Essas grandes frentes, no entanto, quando conseguiam desalojá-lo não eram capazes de realmente governar. Pois não havia nada que os uniam a não ser a recusa a Berlusconi. Principalmente, tais frentes tendiam a anular as forças de esquerda no interior de dinâmicas gerenciais de poder. Sem espaço para impor suas dinâmicas de ruptura, a esquerda era convocada à responsabilidade de sustentar governos com a paralisia das coalizões heteróclitas. Assim, no interior desta dinâmica de frente ampla, todos se enfraqueceram, pois a única força política real era Berlusconi. A única força política real, que pregava a ruptura, estava fora da frente. Todo o resto era a expressão da ordem, de uma ordem que ninguém queria mais. O resultado final demonstrou-se absolutamente inefetivo. Quando Berlusconi enfim caiu em definitivo, seu lugar foi ocupado não por atores dessa frente ampla, mas por alguém ainda pior que ele, alguém cujas simpatias fascistas eram ainda mais evidentes, a saber, Matteo Salvini. Mesmo fora do governo depois de uma manobra desastrada, Salvini permanece o político mais popular da Itália, prestes a retornar ao poder na próxima eleição.

Isto apenas demonstra como, em política, resistir é perder. Resistir é apenas confessar que não é você quem controla a agenda política, quem tem a força de produzir a agenda. Você simplesmente responde negativamente a uma agenda decidida por outro. A política de frente ampla, de todos contra Bolsonaro será impotente diante de uma “oposição consentida” que está a ser gestada atualmente e que visa garantir a proliferação de atores dispostos a perpetuar as políticas do atual governo, apenas com diferentes graus de temperatura e pressão.

Neste ponto fica claro o que falta a uma oposição real no Brasil. Falta-lhe a capacidade de impor no debate público os tópicos de outra agenda. Quando a finada Margareth Thatcher estabeleceu seu braço de ferro contra os mineiros britânicos em greve, ela durante meses repetia o mantra: “Não há alternativa”. O que sempre foi a estratégia clássica do autoritarismo neoliberal, a saber, querer vender a ideia de que o “remédio amargo” é o único remédio (diga-se de passagem, amargo apenas para alguns, pois há sempre os que lucram muito com o amargor de outros). Mas mostrar a existência de alternativas, impor outra agenda, não pode em absoluto significar tentar reeditar o que já foi tentado.

Por exemplo, em seus últimos trabalhos, o economista Thomas Piketty mostrou aquilo que muitos críticos da política econômica do governos petistas já perceberam: que não houve política de combate à desigualdade realmente eficiente. Seus estudos mostram como a participação, na renda total, dos 1% mais ricos cresceu no período do antigo governo e que o crescimento da renda das classes mais pobres foi, na verdade, feita em detrimento da faixa entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, ou seja, em detrimento da classe média. Já havíamos percebido a ineficácia da política em questão quando ficou claro que tudo o que ela havia conseguido produzir fora levar o índice Gini (que mede a desigualdade) aos patamares do início dos anos sessenta. Agora, fica claro em números como ela foi também uma política de preservação e crescimento dos ganhos da elite rentista brasileira, devido à ausência de qualquer reforma fiscal que de fato transferisse a conta para os setores mais ricos da sociedade. Tirar as consequências das ilusões de “todos ganhando” que alimentou as políticas anteriores é condição necessária para que possa aparecer uma oposição que faz minimente jus ao seu nome. Há um longo debate a ser feito que, infelizmente, continuamos a nos recusar a fazer enquanto “resistimos”.