Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei
O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.
Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.
A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.
Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.
E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.
Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.
Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.
O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.
No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.
O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.
Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.
Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.
Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.
Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.