100 anos de Luiz Maranhão
Diálogo com a Igreja Católica
Luiz Maranhão, desde o tempo da sua juventude, já como militante do PCB, sempre buscou diálogo com a Igreja Católica. Foi entusiasta das inovações do Concílio Vaticano II, iniciado pelo Papa João XXIII, em 1961 (foto acima).
Por sua compreensão da necessidade desse diálogo para promover a paz e a solidariedade social, Luiz Maranhão foi designado, após 1964, como o interlocutor do PCB junto ao clero católico no esforço nacional de restabelecimento do regime democrático no país.
A seguir, segue o texto de autoria de Luiz Maranhão, publicado originalmente em 1968 na Revista Paz e Terra, no qual o dirigente saúda o Concílio Vaticano II e aponta a necessidade do diálogo entre marxistas e cristãos na construção de um mundo melhor.
Luiz Maranhão, a democracia e a Igreja Católica
por Cláudio de Oliveira, jornalista e chargista
Luiz Ignácio Maranhão Filho (1921-1974) é um dos onze membros do Comitê Central do PCB a figurar na lista dos desaparecidos políticos e mortos pela ditadura de 1964. Advogado, jornalista, professor do Atheneu Norte-rio-grandense, fundador da Faculdade de Filosofia e Letras do Rio Grande do Norte e ex-deputado estadual, Luiz Maranhão foi preso em São Paulo em 1974 e recolhido ao DOPS, lugar em que foi torturado até a morte.
A notícia do seu assassinato causou consternação no Rio Grande do Norte semelhante àquela verificada em todo o país quando da morte do também jornalista Vladimir Herzog, no ano seguinte. O respeito e admiração pelo principal dirigente comunista potiguar ultrapassava em muito as fronteiras do PCB, alcançava pessoas de pensamento liberal-democrático e até mesmo conservadores, bem como a alta hierarquia da Igreja Católica.
Consta que o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, teria chorado com a prisão e o desaparecimente de Luiz Maranhão, ao ser comunicado por Odete Maranhão, mulher do potiguar. Após o golpe de 1964, Luiz Maranhão foi o encarregado pelo Comitê Central do PCB para articular o apoio da Igreja Católica à luta pela redemocratização do país.
Luiz Maranhão participou da Comissão de Contatos Políticos juntamente com o dirigente Giocondo Dias e o jornalista e ex-deputado Marco Antônio Tavares Coelho. Esteve em uma reunião, representando o PCB, no apartamento de José Aparecido, com o ex-governador Carlos Lacerda e representantes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart para articulação da Frente Ampla, de oposição ao regime. Foi um firme defensor da política de união de todos os setores democráticos para a resistência à ditadura, aprovada no 6º Congresso do PCB em 1967, enquanto alguns advogavam a luta armada.
Sua disposição para uma política aliancista talvez remonte ao início de sua formação política. Em 1939, ainda muito jovem e juntamente com seu irmão Djalma Maranhão, que viria a ser prefeito de Natal, Luiz Maranhão ajudou a fundar o Diário de Natal ao lado de intelectuais de tendência liberal, com o objetivo de lutar contra as ditaduras nazifascistas da Europa e do Estado Novo no Brasil.
Na redemocratização de 1945, Luiz Maranhão participa da organização legal do PCB, mas seu irmão foi expulso do partido. Djalma Maranhão acusa a direção de aventureira e defende uma aliança com o cafeísmo, uma importante corrente política progressista do Rio Grande do Norte, liderada pelo advogado João Café Filho, que, nos anos 1920, juntamente com os comunistas, ajudara a criar os primeiros sindicatos independentes do estado.
Café Filho foi a mais expressiva liderança política local da Revolução de 1930. Mas, por veto de Juarez Távora, foi impedido de assumir a interventoria do Rio Grande do Norte, suspeito de ligações com o PCB. Todavia, os comunistas haviam rompido com Café Filho por ele apoiar a chapa Getúlio Vargas–João Pessoa, da Aliança Liberal, na campanha presidencial de março de 1930, enquanto o PCB lançara a candidatura do marmoreiro Minervino de Oliveira, pelo Bloco Operário Camponês.
Em 1933, Café Filho funda o Partido Socialista Nacional e por ele é eleito deputado federal em 1934, dentro da Aliança Social, coligação com o Partido Social Democrático. No Congresso, articula-se com o senador Abel Chermont e a esquerda parlamentar e funda o Comitê Parlamentar Pró-Liberdades Populares para se opor ao fascismo da Ação Integralista Brasileira e ao golpe de 1937. Ameaçado de prisão, exila-se na Argentina e só volta ao Rio Grande do Norte em 1945, quando se elege deputado federal. Em 1950 é eleito vice-presidente, assumindo a Presidência da República após o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Faz um governo aliado à conservadora UDN e se envolve nos obscuros acontecimentos que antecederam a posse de Juscelino Kubitschek. A favor de Café Filho, o historiador Hélio Silva escreve que ele garantiu o pleito de 1955.
Após a expulsão do PCB, Djalma Maranhão filia-se ao PSP cafeísta e, graças a um acordo entre Café Filho e a UDN do governador Dinarte Mariz, é indicado prefeito de Natal em 1956. Quatro anos depois, rompe com o governador e se elege chefe do executivo municipal, dessa vez numa aliança não só com os remanescentes do cafeísmo, de setores liberal-democráticos, de militantes da esquerda católica ligados à Ação Popular, como também do PCB, já sob a liderança do seu irmão.
Luiz Maranhão atravessou os anos duros do stalinismo e do sectário “Manifesto” do PCB de agosto de 1950. Após o XX Congresso do PC da União Soviética, em 1956, que denunciou os crimes de Josef Stalin, está entre os renovadores para a aprovação da “Declaração de Março de 1958”, na qual o PCB passa a defender uma via pacífica e democrática para o socialismo e a necessidade de uma frente de amplos setores políticos e sociais em torno de um projeto de desenvolvimento independente para o Brasil.
A amplitude política de Luiz Maranhão e a nova conjuntura gerada pela eleição de Juscelino Kubitschek, de cuja campanha participou no Rio Grande do Norte, explicam a sua eleição a deputado estadual em 1958, pela coligação PTN-PST-PSB, já que o PCB tivera seu registro cassado em 1947.
Sua vitória não foi um fato nada desprezível. Luiz Maranhão era publicamente reconhecido como comunista, eleito em um pequeno estado do Nordeste do Brasil, marcado pelo conservadorismo, de economia predominantemente agrária, de operariado industrial quse inexistente. Some-se ao fato de que a capital, a cidade de Natal, ser um ponto de bases militares estratégicas desde a II Guerra mundial, num contexto de guerra fria, em que o mundo ainda estava traumatizado pelo macartismo nos Estados Unidos, quando cidadãos norte-americanos progressistas foram perseguidos, o ator e comediante inglês Charles Chaplin foi expulso do país, e o casal de cientistas comunistas Ethel e Julius Rosenberg foi executado na cadeira elétrica, acusado de passar os segredos da bomba atômica à União Soviética.
Como se verá a seguir, pela leitura do texto “Marxistas e católicos — da mão estendida ao único caminho”, publicado na Revista Paz e Terra, em abril de 1968, e sob a influência do Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 pelo Papa João XXIII e concluído em 1965 pelo Papa Paulo VI, Luiz Maranhão tinha na Igreja Católica não somente um aliado tático, um companheiro de viagem da resistência democrática. Ele acreditava na possibilidade de os católicos tornarem-se uma força social a favor das posições socialistas, aliados estratégicos, de longo prazo, a partir dos valores da democracia, da solidariedade social e da paz no mundo.
Homem culto, leitor voraz, Luiz Maranhão publicou artigos no jornal do PC Francês L’Humanité e certamente acompanhou as discussões que se faziam na Europa, que mais tarde levaram os comunistas italianos, sob a liderança de Enrico Berlinguer, a terem posição semelhante, de trazer o catolicismo para a convivência democrática sob um Estado socialista democrático que não tivesse o marxismo-leninismo como ideologia oficial de estado, mas um Estado verdadeiramente laico.
Luiz Maranhão foi assassinado em 1974 e desde então o mundo deu muitas voltas. É difícil conjecturar que apreciação faria do pontificado de João Paulo II e das posições do presente papa Bento XVI. Quem conhecia o dirigente comunista de perto pode deduzir que ele não apoiaria os protestos na Universidade La Sapienza, em Roma, em 2008, quando Joseph Ratzinger foi impedido de falar aos estudantes e aos professores daquele estabelecimento de ensino superior. Os contemporâneos de Luiz Maranhão são unânimes em afirmar que ele era a encarnação da tolerância e da disposição ao diálogo, possuidor de uma extrema capacidade de ouvir e compreender posições não só diferentes das suas, como também aquelas que lhe eram frontalmente opostas.
Marxistas e católicos. Da mão estendida ao único caminho
Nesta segunda metade do século, a convergência de posições entre marxismo e cristianismo surge como um dos fenômenos mais impressionantes da nossa época, surpreendendo a muitos que não se detiveram no exame de um longo processo, iniciado em alguns países europeus nos difíceis dias da ocupação nazista, desdobrando-se, depois, até o Concílio Ecumênico Vaticano II. Processo que remonta, também, ao que talvez possamos chamar nova teologia, expressa através do pensamento de Teilhard de Chardin, cujo itinerário de perseguições impostas pela velha estrutura assinala bem o seu lugar entre os portadores de ideias novas.
Grande teria de ser, como vem sendo, a repercussão no Brasil daquele fenômeno sociopolítico de algumas ações unitárias entre marxistas e católicos, principalmente porque, a esta altura dos acontecimentos, tais atitudes já são adotadas não apenas por setores isolados, nos escalões intermediários, mas pelas próprias cúpulas internacionais. O Brasil é o país de maior população católica do mundo, e essa condição haveria de exigir uma atenção especial para esses assuntos, tanto da parte dos marxistas como dos cristãos. Mas acreditamos que eles tenham interessado principalmente aos últimos e com muita razão. Sendo um país em desenvolvimento, com extensão continental e possuindo tão importantes recursos naturais, o Brasil se destina a ocupar posição entre as grandes potências. Já não se trata do velho “ufanismo” do “país do futuro”, mas de uma realidade que se evidencia ao aproximar-se o limiar do ano 2000.
Vivemos a época em que já se constroem as bases materiais e técnicas do comunismo; a época do triunfo e florescimento da sociedade socialista; a época em que povos e mais povos fazem a sua transição ao socialismo.
É provável que a consciência da Igreja sobre a importância do Brasil para o seu futuro em face dessa época explique algumas das mais sérias crises enfrentadas pelo regime ditatorial vigente em nosso país. A Igreja, cuja hierarquia participou do golpe de 1º de abril e lhe deu respaldo nas camadas médias, entra em choque, às vezes abertamente, com o governo militarista. Essa é uma contradição que não poderia passar despercebida a ninguém. Nem mesmo aos que fecham os olhos para não ver.
Os marxistas, naturalmente, colocam-se diante dessas observações examinando-as de um ponto de vista das relações entre as classes sociais. Essa análise é da maior importância para o desenvolvimento de grandes lutas que inevitavelmente se avizinham, lutas de afirmação nacional e democrática e inseridas no grande fluxo político do nosso tempo, a poderosa caudal do socialismo.
Mas, para compreendermos alguns fenômenos nacionais, é necessário remontar a aspectos históricos gerais.
Sobrevivente dos escombros do Império Romano, que ruíra ao fragor das invasões chamadas “bárbaras” do século V, a Igreja, adaptando-se às novas condições surgidas com o feudalismo, terá na Idade Média o período do seu grande fastígio, como instrumento das classes dominantes. Desnecessário lembrar que desde Constantino ela rompera com suas origens, deixando de ser uma organização dos oprimidos. Dessa sua primeira fase, o escritor sueco Pär Lagerkvist nos dá uma boa imagem no seu livro Barrabás, mostrando a organização dos escravos nas minas de cobre. O cristianismo era uma forma de organização dos trabalhadores na luta contra os senhores. A Igreja constantiniana é a negação de tudo isso. É a negação do próprio cristianismo. E foi essa estrutura negativista que permaneceu no tempo, chegando até aos nossos dias.
Senhorial e despótica, a Igreja governou o mundo. Já não era apenas um instrumento dos opressores, mas parte integrante das classes dominantes, das quais se torna centro da aglutinação e decisões. A principal expressão desse imenso poder centralizador foi, sem dúvida, o Sagrado Império Romano-Germânico, que em certo período reunia mais de mil Estados semi-independentes. Tornando-se dona de imensas riquezas, inclusive de grandes extensões de terra, essa Igreja escolhia o seu chefe, o Papa, em assembleia de senhores feudais. Somente muito depois é que tal escolha passaria a ser efetuada em assembleia dos cardeais.
A Igreja feudal espelharia a corrupção da sua classe social. Esse aspecto seria fixado por Maquiavel em uma obra que não teve a projeção de O Príncipe, mas é uma obra-prima de denúncia, A Mandrágora.
A degradação dos costumes, aquela terrível corrupção, foi o motivo externo, a motivação para o Cisma do Ocidente, cujas raízes na verdade estavam no choque determinado pelo aparecimento de uma nova classe na sociedade, classe que então ascendia rapidamente ao impulso de forças produtivas que surgiram no campo econômico. A burguesia nascente, que comandava a grande Revolução Industrial, fazendo o seu ingresso na arena política sob o signo de violentas convulsões, decapitando reis e não vacilando em desmoronar as velhas estruturas, teria de chocar-se com a Igreja feudal. Esta resistirá com todas as suas forças. E seguirá resistindo. Da parte de certos setores, até hoje. Vinculada à sua longa formação feudal, conservará sempre um traço de medievalismo em sua ideologia. Uma legítima e consciente representante de l’ancien régime.
A jovem burguesia conseguirá, entretanto, cindir aquelas velhas estruturas. O cisma luterano é a expressão daquela luta de classes. O capitalismo encontrará no protestantismo um dos seus esteios ideológicos, que exerceu, entre outras, a função de justificar a ambição de ganho e a valorização do trabalho, o esforço do homem na produção econômica. Para levar à frente a sua revolução, a burguesia, como classe, necessitava transformar a mentalidade dos homens, animando-os e ativando-os para que desempenhem as suas tarefas e assumam a sua parcela de responsabilidades na Revolução Industrial. Não se pode dizer que esse fenômeno teve um caráter geral e fundamental. Mas é indiscutível a importância do protestantismo, como fator de superestrutura, para a liberação da força de trabalho, esta por sua vez indispensável nas transformações de infraestrutura. No seu Bandeirantes e Pioneiros, Viana Moog assinala a influência desses fatores na colonização do continente americano.
Uma nova sociedade surgia com a Revolução Industrial, e o ruído dos teares já não se acomodava ao cantochão das Igrejas góticas. A verdade é que os países protestantes caminharam à frente na abertura de toda uma importante fase da história da humanidade, imprimindo à sociedade um ritmo de ação cheio de energia, liquidando com a velha maneira de prestar culto à divindade através de mortificações, jejuns, etc. Isso já contrariava os interesses da nova classe dominante, que encontra em Martinho Lutero o ideólogo para a justificação do sistema de vida capitalista.
Enquanto isso, a Igreja se mantinha na sua obstinada resistência, fiel à defesa dos seus bens terrenos, das suas prerrogativas e das suas antiquadas concepções. Ela continuará marcada pela mentalidade dos ascetas e anacoretas, que procuravam fugir à realidade do mundo, isolando-se de todos, e cuja dolorosa imagem foi bem fixada por Anatole France, quando faz o pobre Frei Antoine descobrir a hediondez do seu próprio rosto.
Sem dúvida, a Igreja demonstrou capacidade de adaptação e soube conviver com os sucessivos regimes sociais. É impressionante, porém, como se manteve firme na sua posição retrógrada na transição do feudalismo ao capitalismo. Há dois aspectos dessa posição que despertam atenção.
Um desses aspectos é a campanha sistemática do Vaticano contra o liberalismo. As denúncias feitas em diversos documentos pontifícios revelam que a Igreja sempre apontou os males gerados pelo capitalismo como uma forma de justificar as suas posições anteriores, com evidente saudosismo dos velhos tempos. Há sempre a preocupação de demonstrar que o progresso obtido foi infrutífero, pois os males sociais estavam se agravando. Em todo o mundo católico surgem movimentos tradicionalistas. As velhas classes dominantes suspiram, saudosas dos bons tempos. A toda hora apontam os males do liberalismo, tentando mostrar que no seu tempo as cousas eram melhores. Essa linha de pensamento levará mesmo a uma condenação do imperialismo do dinheiro, expressão usada em um documento pontifício e hoje relembrada para melhor explicar algumas posições atuais. Na verdade, aquela condenação tinha a marca do saudosismo que já fora observado pelos fundadores do socialismo científico, os clássicos dos marxismo, ao assinalarem, ironicamente, a existência de um socialismo feudal. No Brasil, Eduardo Prado ofereceria com A Ilusão Americana um exemplo dessa posição, na qual ele nem escondia o fundo do seu monarquismo medieval. Ele condena os crimes da expansão capitalista. Mas não avança às posições progressistas da República. Mantém-se no saudosismo monarquista. Isso tudo formalizou uma constante na atitude da Igreja com uma sua nítida vinculação ideológica ao feudalismo.
Outro aspecto da resistência da Igreja à Revolução Industrial foi a luta desesperada que travou em defesa dos seus domínios, das suas propriedades. Os Estados Pontifícios tentarão sobreviver de qualquer maneira e farão da península italiana o teatro de uma grande batalha, na qual se defrontarão as forças novas, resultantes do processo de industrialização contra o reacionarismo feudal da Igreja. A revolução nacional italiana, o processo de unificação da Península, essa brilhante Revolução que dará ao mundo figuras como Cavour e Mazzini é realizada contra a Igreja, derrotando-a pelas armas. Instaurando o Reino Italiano em Turim (1861), Vitor Emanuel imporá a derrota final às forças da Igreja, destroçando o Exército Papal e ocupando Roma. O que se segue é a localização do Papa no Bairro do Vaticano, que ali permanecerá dizendo-se “prisioneiro”, derrotado mas intransigente na fidelidade ao seu feudalismo. Reduzida aos limites do velho bairro romano, limites por demais estreitos para quem vivera o esplendor do Sagrado Império, a Igreja atravessará uma fase de sonolenta decadência. Já não apresenta sequer a fase hirsuta e dolorosa do Frei Antoine da obra anatoliana. Não restará mais do que a imagem de figuras ultramontanas, pachorrentamente corruptas, como o Cônego Dias e o Libaninho, entre outras incorporadas à criação literária de Eça de Queirós.
Com essa imagem a Igreja ingressa no século XX, em cuja segunda década ocorrerá o grande acontecimento que foi a Revolução de Outubro, a revolução socialista dirigida por Lenine, fazendo a classe operária pela primeira vez ascender ao poder em um país. Com o triunfo da revolução proletária na velha Rússia inicia-se um novo período na história da humanidade. E o surgimento da URSS deu novas dimensões ao movimento revolucionário internacional. Encerrada a fase da intervenção armada da burguesia internacional contra o jovem Estado socialista, inicia-se a preparação de uma contrarrevolução, violentamente jogada contra a vitória operária de 1917. Foi o fascismo, última etapa do capitalismo e que mostra o imperialismo em sua agressividade guerreira.
O fascismo foi buscar na Igreja uma das bases fundamentais da sua concepção social: o corporativismo. Com a Igreja sempre o fizera, o fascismo surge condenando e decretando a falência do liberalismo. Em face do ascenso do socialismo a burguesia necessita, ao mesmo tempo, preparar-se para o ataque militar de liquidação do Estado proletário e promover uma reestruturação da organização social que demonstrasse ainda haver, depois da falência do liberalismo, formas de desenvolvimento nos marcos da propriedade privada.
A simbiose capitalismo-corporativismo foi o elo para uma aliança do fascismo com a Igreja, que recebia da burguesia as homenagens de uma reparação histórica. Era como se a burguesia, tanto tempo depois de haver liquidado Carlos V e Luiz XVI, voltasse aos remanescentes do feudalismo para o reconhecimento de alguns dos seus erros e para uma composição entre cavalheiros. A composição efetivamente foi alcançada e teve o nome de Concordata. O Tratado de Latrão dará ao Papa o status de Chefe de Estado, e a Igreja se projetará como que partindo para uma segunda Contrarreforma, desta vez apoiada na poderosa máquina montada por Benito Mussolini. O mundo católico foi todo mobilizado nessa batalha inglória, sempre em nome de um ferrenho anticomunismo e de um não menos ferrenho antiliberalismo. No Brasil esse tipo de luta contra o liberalismo ficou documentado em Brasil, Colônia de Banqueiros. Com esse livro, Gustavo Barroso liga-se historicamente em linha vertical a Eduardo Prado. Este com o seu antirrepublicanismo, voltado para a monarquia. E o primeiro com o seu anticomunismo, voltado para o fascismo. De um a outro a marca do feudalismo. A vã tentativa de restaurar as velhas Corporações de Ofício serviu apenas para mascarar a ação dos grandes monopólios, que aumentarão cada vez mais, na sua sede de lucro, a exploração das grandes massas. E o mais caro dos preços, o da liberdade, foi pago por muitos povos.
Não se pode dizer que a Igreja como um todo tenha sido responsável pelo caminho adotado a partir da Concordata. Vale inclusive lembrar que Ignazio Silone focaliza esse problema em Pão e Vinho, colocando o Padre Benedetto na aldeia, para onde vai praticamente exilado, a referir-se entre os camponeses ao Papa Pio XI chamando-o de Pôncio XI… A notícia se divulga e os cafoni, aturdidos, perguntarão uns aos outros se já ouviram falar que está sentado na cadeira de São Pedro um descendente de Pôncio Pilatos. Eis aí uma dura imagem que refletia o drama final da Igreja constantiniana.
Esse drama assumirá aspectos apocalípticos no pontificado seguinte, quando Pio XII levará a extremos a opção feita pelo seu antecessor. De tal maneira que se repetirá a imagem de Silone da comparação do Papa ao Procurador da Judeia. A comparação, tanto cruel quanto exata, foi retomada modernamente por Rolph Hochhuth em O Vigário. Nessa peça, surge no palco a figura de Pio XII. Frio e álgido, ele recebe a desesperada visita do padre que vem da Alemanha, onde luta contra os nazistas. Faz um apelo veemente ao Papa. Uma palavra sua, uma atitude do Vaticano, salvará a vida de milhões de pessoas. O massacre dos judeus não se consumará. Pio XII, com imponente rudeza, nega-se a tomar essa atitude. A cena se conclui com o Papa lavando as mãos diante do Padre desesperado, cuja mente recorda o drama dos campos de concentração e dos fornos crematórios. Pio XII lava as mãos diante de tudo isso. É como se estivesse no palco o próprio Pôncio Pilatos.
E não seria demais completar a imagem de Rolph Hochhuth com a outra de Shakespeare, porque Pio XII como Lady Macbeth poderia ter prosseguido a lavar as mãos, inutilmente, sem deixar de vê-las sempre manchadas de sangue.
Mas tudo isso será em breve um capítulo encerrado na História. O seu término ocorrerá quando a 30 de abril de 1945 um jovem soldado soviético hasteia a bandeira do seu país em Berlim, no topo do Reichstag.
A experiência de toda essa fase será da maior importância para as novas atitudes da Igreja, para quem restará do período anterior apenas o rebotalho do salazarismo e do franquismo na Península Ibérica. Vivendo novos tempos, impulsionada por novas forças geradas em seu próprio seio, a Igreja empreenderá a revisão de suas atitudes. E o fará em dimensões de inegável grandeza. A necessidade que tenha hoje de referência a tantos fatos negativos é imposta para tornar bem claro o que houve, quanto a uma tomada de consciência, a partir de João XXIII.
Teilhard de Chardin e José Lebret, eis aí duas figuras que sintetizam e simbolizam as profundas transformações da Igreja nos tempos contemporâneos. O primeiro desenvolverá toda uma linha de pensamento, atingindo o campo da filosofia e da teologia, enquanto o segundo renova o pensamento social da Igreja, fazendo-a viver o problema econômico dos países subdesenvolvidos, um problema denso de conteúdo revolucionário.
Chardin (jesuíta) e Lebret (dominicano) constituem como que uma soma de todo um processo de evolução, de uma luta interna travada ao longo do tempo. Ficou dito, linhas atrás, que as posições negativas da hierarquia nem sempre correspondiam à atuação das bases. Esse processo dialético de luta dos contrários pode ser encontrado, inclusive, nas Idades Média e Moderna, não havendo, por exemplo, termo de comparação entre as posições de um Torquemada com as de um Abelardo. E se tomarmos na Idade Contemporânea um país como a França, por exemplo, encontraremos a influência positiva de um Jacques Maritain, cuja projeção igualmente não pode ser comparada à indigência política de um Charles Maurras. No mesmo curso de observações encontraríamos, ainda, o confronto entre a velha Action Catholique e Action Populaire.
Durante a Segunda Guerra Mundial aquelas forças positivas existentes nas bases da Igreja rebelar-se-ão, na França e na Itália, contra a hierarquia, estabelecendo por conta própria uma aliança com os marxistas. No maquis francês ou como partigiani nas montanhas italianas, muitos padres católicos estarão juntos com os marxistas, de armas nas mãos, lutando contra o nazismo. No após-guerra esse fato apresentar-se-á com o caráter de uma tendência irreversível. E outros exemplos surgirão, entre os quais o dos “padres operários”, que tão profundamente evidenciaram as possibilidades de uma fecunda ação conjunta exercida por marxistas e cristãos.
Com a eleição do Papa João XXIII a Igreja realiza o seu grande aggiornamento, atualizando-se em face dos novos tempos e de um mundo em trasição. Prepara-se, ela também, para essa transição. As encíclicas sociais de João XXIII e Paulo VI trazem esse sopro de renovação. É o triunfo das ideias do Padre Lebret, cujo pensamento vem a ser consubstanciado na Populorum Progressio, documento em que a Igreja não apenas aceita a existência do socialismo. Mais do que isso, chega a uma opção em favor do socialismo ao liquidar com a sua antiga posição de defesa intransigente da propriedade privada.
A Populorum Progressio faz críticas ao capitalismo liberal, mas já reconhecendo que a Revolução Industrial foi um fator de progresso. Vale a pena lembrar esse trecho:
Mas se é verdade que um certo capitalismo foi a fonte de tantos sofrimentos, injustiças e lutas fratricidas com efeitos ainda duráveis, é contudo sem motivo que se atribuem à industrialização males que são devidos ao nefasto sistema que a acompanhava. Pelo contrário, é necessário reconhecer com toda a justiça o contributo insubstituível da organização do trabalho e do progresso industrial na obra do desenvolvimento.
Combatendo o capitalismo liberal, a Igreja não o faz já agora com nenhum vínculo com o feudalismo, reconhecendo a contribuição trazida pela Revolução Industrial, mas a esta altura já voltada para a forma socialista de produção. Deixando de lado sua posição extremada quanto à propriedade privada, esses conceitos já estavam claros desde a Mater et Magistra:
[…] deverá concluir-se que a socialização, crescendo em amplitude e profundidade, chegará a reduzir necessariamente os homens autômatos? A esta pergunta temos de responder negativamente. Não deve considerar-se a socialização como resultado de forças naturais impelidas pelo determinismo; ao contrário, como já observamos, é obra dos homens, seres conscientes e livres, levados por natureza a agir como responsáveis, ainda que em suas ações sejam obrigados a reconhecer e respeitar as leis do progresso econômico e social, e não possam subtrair-se de todo à pressão do ambiente. Por isso concluímos que a socialização pode e deve realizar-se de maneira que se obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam consequências negativas. A época moderna tende para a expansão da propriedade pública: do Estado e doutras coletividades.
Pode-se dizer que a vitória das ideias de Lebret foi ainda maior porque a Igreja se engajou na luta dos povos subdesenvolvidos contra a espoliação do neocolonialismo.
Quanto a Chardin, as suas ideias não foram ainda aceitas pela hierarquia. Como é sabido, esse jesuíta, que veio a falecer em 1955, elaborou uma nova concepção teológica, partindo da evolução das espécies de Darwin e da existência da matéria. Praticamente considerado um herético, foi desterrado para a Ásia, onde se dedicou a pesquisas paleontológicas. O seu nome aparece sempre lembrando os de Copérnico e Galileu. Ainda em 1962, o Santo Ofício baixava instruções severas no sentido de “preservar os jovens contra a obra do padre Teilhard de Chardin”. A seu respeito, o escritor italiano G. Vigorelli escreveu um livro intitulado O Jesuíta Probido. Muitos esperavam que o Concílio Ecumênico Vaticano II já viesse a proporcionar uma vitória das concepções de Chardin. Entretanto, o Concílio, fazendo tão grandes aberturas no campo sociopolítico, manteve-se solidamente hermético nas questões teológicas. Mas a sombra de Chardin, por mais que evitassem a discussão de suas teses, pairou sobre o Concílio. E continuam ganhando corpo no seio da Igreja, com uma grande penetração dos seus livros, entre os quais dois se destacam: A Visão do Passado e O Futuro do Homem.
Talvez esteja próximo o dia em que a Igreja possa rever o seu velho arcabouço teológico e o chardinismo ocupe um lugar destacado como pensamento religioso dentro de uma sociedade socialista.
Os marxistas, naturalmente, olham essas transformações com interesse e entusiasmo, embora de início alguns com certas reservas, pois de sua parte existem igualmente problemas de ordem ideológica. Em primeiro lugar, surge a questão de como explicar essas transformações do ponto de vista do marxismo. E, em segundo lugar, a análise para precisar o alcance de tais aberturas, até onde ela pode ir no contexto da luta de classes.
Aliás, diga-se de passagem, a transformação ocorrida na Igreja de Roma foi relativamente modesta. Nesse sentido, o Budismo oferece um avanço mais considerável, sendo conhecida a consigna partida da Birmânia: o socialismo é o triunfo de Buda. Sem dúvida, pode-se esperar não esteja distante o dia em que igual pronunciamento possa ser feito no Ocidente com uma equivalente afirmação: o socialismo é o triunfo de Cristo. Entretanto, é conhecida a timidez com que a Igreja Católica se refere ao socialismo, usando às vezes eufemismos e através de circunlóquios, temerosa da maldição que ela mesma lançou contra o sistema e a palavra.
Isso ocorre em consequência da posição acentuadamente de classe assumida pela Igreja, como religião e estrutura, vinculando-se ela própria ao sistema da propriedade privada. E somente como instrumento das classes dominantes é que a religião se choca frontalmente com o socialismo. Não é sequer um problema ideológico.
Nesse sentido, dentro da visão da luta de classes, devemos ter a sinceridade de discordar de algumas posições de Roger Garaudy. Principalmente quando ele expõe o quadro do mundo atual como se nele os marxistas e os cristãos já não pudessem alcançar os seus objetivos sem a unificação das suas forças. Essa é uma concessão que se encontra em Garaudy e que não ajuda nem mesmo a desenvolver a unificação daquelas forças.
Na verdade, o que se verifica é a ascensão da classe operária a uma posição já condicionadora dos rumos da sociedade, internacionalmente, em nossa época. Já não é a classe do futuro, senão a grande classe do presente. Representada pelo poder socialista implantado em numerosos países e pelo crescente poderio de sua influência no próprio campo capitalista, a classe operária condiciona a direção dos acontecimentos sociais.
A Igreja, como organização social, é susceptível de receber a influência da sociedade. O seu mérito é haver captado e compreendido essa realidade e vir promovendo a sua opção histórica, aceitando o socialismo. A sua dificuldade é que, para fazer essa opção, ela tem de romper com os seus velhos e poderosos vínculos com a propriedade privada, ela mesma rica proprietária. Na mudança atual que se opera na sociedade, na passagem ao socialismo, não restará possibilidade de a Igreja ficar vinculada aos restos de uma classe dominante derrotada, como fez com o feudalismo frente à Revolução Industrial. A classe operária ao se libertar liberta toda a sociedade. Desaparece o quadro tradicional da dominação de uma classe por outra. Surge a sociedade sem classes. Para a Igreja, será inevitável a rutura com o passado constantiniano e o retorno às suas origens, à posição da Igreja dos três primeiros séculos do cristianismo.
O “Pacto das Catacumbas”, documento assinado por numerosos Bispos durante o Concílio, corresponde a essas posições no campo orgânico da estrutura. Já se viu que as ideias de Lebret triunfaram na concepção socioeconômica da Igreja. As ideias de Chardin ganham força no campo teológico. Assim também o “Pacto das Catacumbas” crescerá no seio da estrutura. São três partes integrantes de um mesmo processo, através do qual a Igreja caminhará ao socialismo.
Dentro dessa concepção, compreendendo que marchamos para a sociedade sem classes, torna-se claro que nenhuma religião será transformada em instrumento da classe operária. A religião harmoniza-se com a classe operária. E o fará sem necessidade de outro Cisma, como aquele de Martinho Lutero que serviu de suporte ideológico ao capitalismo contra o feudalismo. Nessa nova situação que se vai criando, a maior probabilidade de um Cisma seria da parte do grupo reacionário colocado em minoria durante o Concílio. Essa posição dramática tornou-se evidente quando o Cardeal Spelman, numa provocação às iniciativas de Paulo VI em favor da paz no sudeste asiático, dirigiu-se ao Vietnã para dizer lá, em pleno campo da agressão imperialista, que os soldados americanos ali se encontram “lutando em defesa da civilização ocidental e cristã”. A velha linguagem, inteiramente superada e deixada para trás pelo Vaticano, fica sendo um privilégio do grupo minoritário, de tendência cismática.
Os marxistas, nessa convergência a que aludimos inicialmente, procuram colocar em termos exatos, já agora na base de uma experiência histórica de meio século de existência do regime socialista, os problemas de sua posição frente ao fenômeno religioso. Tornou-se atual a análise de uma frase de Marx, durante muito tempo tomada isoladamente e interpretada de maneira facciosa: “a religião é o ópio do povo”.
O trecho completo de Marx é o seguinte:
A religião é o suspiro da criatura atormentada, o estado de ânimo de um mundo sem coração, porque é o espírito dos estados de cousas carentes de espírito. A religião é o ópio do povo. A superação da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real.
Como se vê, Marx assinala a religião como originada no sentimento dos oprimidos em face de “um mundo sem coração”. E quando fala da superação da religião o faz claramente em referência à superação da religião como felicidade ilusória do povo. É no sentido dessa felicidade ilusória que a religião é simplesmente “ópio do povo”.
Um proveitoso debate vem-se travando no campo do marxismo em torno desses assuntos, destacando-se a contribuição dos italianos, a partir das proposições de Palmiro Togliatti em O Caminho Italiano para o Socialismo. É nessa ocasião que se coloca a afirmação de que o marxismo não pugnará na Itália por um Estado que se oponha à religião, mas ao contrário que se lhe assegure completa e efetiva liberdade de existência.
Esse debate se desenvolve, indo dos estudos de Pietro Ingrao, [Lucio Lombardo] Radice e [Mario] Gozzini, na Itália, ao confronto Garaudy–Althusser, na França, e às análises de Adam Schaff, na Polônia.
De nossa parte, uma observação nos parece válida. Está nos clássicos do marxismo que, na construção da nova sociedade socialista, a última cousa que desaparecerá dos resquícios da velha sociedade será aquilo que está na cabeça dos homens. É ponto pacífico, também, que toda superestrutura social corresponde a uma infraestrutura econômica. Já se disse mesmo: o homem que passou a trabalhar com o moinho movido a vapor já não pensava da mesma maneira do homem que trabalhava com um moinho movido a água.
Com essa compreensão é que se explica o princípio geral do socialismo: a cada um, de acordo com as suas possibilidades de produção, é assegurado o interesse material dos homens em sua atividade econômica. E aqui chegamos à observação de que esses mesmos homens, em muitos casos, conservarão as suas ideias religiosas. Querer modificar tudo isso, eliminando o estímulo material na produção ou esses pensamentos, sem antes promover a transformação da infraestrutura, é a negação do próprio marxismo.
A questão de o marxismo aceitar a existência da religião no regime socialista não apresenta, portanto, dificuldades. E quando são feitas tentativas no campo socialista para eliminar a religião do pensamento dos homens, antes daquelas transformações indispensáveis na infraestrutura, os resultados conhecidos são inclusive nefastos. A recente Revolução Cultural empreendida na República Popular da China é disso o mais recente e desastrado exemplo. Os incêndios dos pagodes promovidos pela Guarda Vermelha não representam contribuição nenhuma para a consolidação de uma consciência proletária. Ao contrário, constituem um entrave para que a nova sociedade, a sociedade socialista, assimile, absorva e transforme a herança cultural da velha sociedade.
O único entrave à convivência do socialismo com uma religião qualquer é a vinculação que a mesma porventura mantenha como instrumento das antigas classes dominantes. No que se refere à Igreja Católica, esses laços começam a ser deixados para trás. E em breve poderão ser entregues a um passado para sempre desaparecido. Isto é o que se pode deduzir do processo dialético em desenvolvimento na Igreja, um processo em cuja correlação de forças as ideias novas já assumem uma posição dominante, anunciando a vitória do pensamento de Lebret e Chardin.
No Brasil, a posição de setores da Igreja é de uma forte tomada de posição em defesa do aggiornamento. Às vezes, é a própria hierarquia que oferece choques na luta contra o regime retrógrado implantado em nosso país.
O que se passa com essa Igreja é que o golpe de 1º de abril desempenhou para ela um papel equivalente ao da Segunda Guerra Mundial para a Igreja na França e na Itália. Na Europa, a Igreja serviu aos interesses do Fascismo para a deflagração da guerra. Mas as suas bases se uniram aos marxistas na luta contra o nazismo. Em nosso país, a hierarquia clerical patrocinou o golpe militar, mas as perseguições se abateram também sobre os padres, inclusive unindo estes aos marxistas nos cárceres.
Mas a Igreja no Brasil tem através da história aspectos que necessitam ser lembrados para compreendermos melhor o que se passa hoje.
Chegando aqui na batalha da Contrarreforma, “dilatando a Fé e o Império”, a Igreja oferecerá ao Brasil o seu primeiro “subversivo” na pessoa do Padre Antônio Vieira, que saiu daqui perseguido pela Inquisição. A expulsão dos jesuítas no Governo Pombal (1759) será um dos fatores para o surgimento de um clero nacional, que se desenvolverá como exigência do surto de progresso que anima a colônia. Muitas figuras desse clero, oriundo já de famílias brasileiras, assumirão um papel de liderança nas lutas pela libertação do jugo colonial. Autênticos heróis nacionais, muitos deles tombaram, com destemor, dignificando as posições da Igreja no Brasil na primeira metade do século XIX.
É impressionante a participação da Igreja na revolução republicana de 1817, com a sublevação de três províncias nordestinas. Nada menos de sessenta padres e treze frades apoiaram a revolução. Muitos desses sacerdotes tiveram suas vidas sacrificadas, como o Padre Miguelinho (Miguel Joaquim de Almeida).
Na Confederação do Equador (junho de 1824) a mais destacada figura é o carmelita Frei Caneca, que seria fuzilado, amarrado numa forca, numa cena das mais dramáticas da história nacional Poderíamos, ainda, lembrar figuras como a Freira Joana Angélica, assassinada na Bahia, dentro do seu convento, arrombado pelos soldados portugueses. Sem dúvida, esse clero representava muito bem os interesses das classes dominantes da época. Ele era formado entre os filhos dos senhores de engenho, criadores e agricultores brasileiros. O que é historicamente importante é que isso lhe dava um caráter nacional.
Proclamada a Independência, as posições progressistas do clero se manifestam na vida política. Isto ocorre já na Constituinte convocada pelo Imperador Pedro I, ao se travar o debate sobre a liberdade religiosa, inscrita no art. 7º do Projeto. Havendo na Constituinte dezenove sacerdotes, somente dois obedeceram à orientação reacionária da Igreja. Dezessete votaram pela liberdade religiosa.
Havia assim uma corrente progressista na Igreja deste sua formação. Essa corrente reduz sua influência noutros períodos, como na Abolição e na República. As mesmas vinculações de classe que haviam levado os sacerdotes, outrora, a lutar contra o jugo português faziam amortecê-los na campanha abolicionista.
Os movimentos liderados por Jacques Maritain e Padre Lebret deram novo impulso a essas correntes progressistas em nosso país. Mais recentemente, já sob o influxo da convocação do Concílio Ecumênico, haverá uma grande atividade junto aos trabalhadores do campo, passando os padres em alguns municípios a atrair o ódio dos latifundiários, que retiram o tradicional apoio financeiro às Paróquias e até agridem os sacerdotes fisicamente. Este é um dado importante, pois revela que muitos católicos mudam sua posição de classe, consciente das responsabilidades de não deixar a Igreja perder aqui o campesinato, ela que na Europa perdeu a classe operária desde o século XIX.
Essa corrente progressista seria surpreendida, pois a velha Igreja tinha o domínio da situação e mostrou-se fiel aliada do imperialismo norte-americano. O Padre Peyton e sua “Cruzada do Rosário em Família” foram o prelúdio subliminar organizado pela CIA para as futuras “Marchas” que serviram de suporte ao golpe de 1º de abril.
Logo em seguida, a Igreja se sentirá atônita, com padres presos e bispos ameaçados. O mais sério é que a atitude do Vaticano era de apoio às correntes progressistas. E isso determinará uma contradição para cuja seriedade não se aperceberam os militares golpistas.
A posição do Vaticano é ditada pela compreensão que tem da importância da América do Sul e, em particular, do Brasil para o futuro da Igreja. Ao que parece, há uma convicção de que o Brasil seria a grande nação que melhor guardaria os traços do cristianismo em um mundo socialista.
É evidente que a Igreja, na América do Sul, não está muito bem capacitada para essas responsabilidades. Por isso foi oportuno o que fez um líder sindical dos portuários argentinos (em greve), que interrompeu uma reunião do Episcopado argentino e leu a seguinte mensagem dos grevistas à Igreja:
Vocês não ignoram que há um povo que há anos sofre, é perseguido, explorado e até o matam. E também sabem que não faz muito um Papa (João XXIII) morreu chorando porque dizia que o maior pecado da Igreja é ter perdido a classe trabalhadora. Nós portuários somos parte dessa classe que ficou sozinha. Não vimos prostrar-nos nem pedir clemência. Vimos exigir que falem, que se definam, porque como cristãos sabemos que vocês têm uma mensagem que lhes foi dada não para ocultar, mas para ser gritada. Que aqueles que se autointitulam defensores da Justiça e Mensageiros da Paz calem ou fiquem ao lado dos nossos verdugos, não somente não os entendemos, como também nos parece uma atitude hipócrita e farisaica.
Quanto aos marxistas brasileiros em sua posição frente aos católicos, acreditamos que possam afirmar, como numa frase recentemente pronunciada: “Já não se trata de estender-lhes a mão, mas de marcharmos juntos com eles”.
Publicado na Revista Paz e Terra, ano II, n. 6, abr. 1968. Digitalizado por Enny Maria dos Santos.
Confira a publicação original em:
https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1394