O país vive um dos momentos mais dramáticos de sua história. A pandemia impede a presença maciça da população nas ruas para viabilizar o impeachment de Bolsonaro
A pandemia tem se revelado a grande aliada do “governo” facinoroso de Jair Bolsonaro. Ela tem assegurado que as ruas fiquem vazias das multidões inconformadas com os rumos do “governo” e, especialmente, com a gestão da saúde. Essas multidões certamente as estariam ocupando, não fosse a pandemia, porque só as ruas levam ao impeachment. Mas como ir às ruas enquanto grassa uma pandemia de um vírus letal? O que fazer, sair às ruas para viabilizar o impeachment à custa de nossas próprias vidas? É legítimo estimular pessoas a ir às ruas e se sujeitar ao contágio letal, colocando suas vidas em risco?
Assim, o Brasil vive a quadra mais dramática da sua História. Se quiser viabilizar o indispensável impeachment, o brasileiro consciente tem de ocupar as ruas – e, sem pandemia, isso já estaria acontecendo naturalmente; mas não pode ir às ruas para não contradizer sua consciência – é preciso cumprir a quarentena para conter a disseminação do vírus. Por isso, soa fácil a Bolsonaro ser negacionista e insistir em ir às ruas cercado por seus guetos: sabe que seus adversários não podem fazer a mesma coisa sem se contradizerem.
É esse fio de navalha que Bolsonaro cavalga para garantir sua passagem às eleições de 2022. Sabe que se houver grandes manifestações, o impeachment ganhará força e velocidade, e ele cairá. E sabe mais: que, sem ele na corrida presidencial, o quadro eleitoral de 2022 se altera bruscamente, pois o eixo da polarização grimpa. Afinal, ele e Lula, à frente nas pesquisas, são antípodas só de mentirinha; na verdade, são mutuamente convergentes na polarização – um retroalimenta o outro.
Mais que isso: o falso dilema de declarar inevitável o confronto de Bolsonaro e Lula ajuda a limar as incômodas rejeições de ambos. Há uma falsa posição no atual jogo de aparências: querem atestar que só Lula nos salva de Bolsonaro, mas esta é uma verdade que se restringe ao quadro em que os dois se enfrentam. Com as significativas rejeições que ambos ostentam, eles só se mantêm vivos na corrida eleitoral nesse quadro de enfrentamento mútuo. Como hoje Lula parece ser o único a vencer Bolsonaro, sua rejeição arrefece, pois muita gente que não votaria nele contra qualquer outro candidato muda de ideia nesse quadro e acaba votando, para “evitar o pior”. E Bolsonaro só iria ao segundo turno (e tem alguma chance de vencer o pleito) se o seu competidor for Lula, pelas mesmas exatas razões, lidas ao revés.
Os antípodas não são antípodas, são meros Saquaremas e Luzias. Mais de 160 anos depois da frase máxima do deputado, senador, ministro da Fazenda, da Marinha e da Guerra no Império, Antônio Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti Albuquerque, Visconde de Albuquerque, a mesma verdade volta a reluzir – nada mais parecido com um Saquarema que um Luzia. O fato é que, contra os achaques de Saquaremas e Luzias, só a voz rouca das ruas seria capaz de se alevantar e fazê-los temer e tremer.
As grandes manifestações de rua sempre impõem alguma mudança de rumo ao país. Entre 10 e 16 de novembro de 1904, o povo pobre ocupou as ruas do Rio de Janeiro para protestar contra as medidas autoritárias que o governo Rodrigues Alves impôs para enfrentar a epidemia de varíola – grassou a Revolta da Vacina. O governo reprimiu e deportou manifestantes para o Acre, mas cedeu em parte ao tornar a vacina facultativa, para atenuar o receio do populacho ante aquela novidade científica “assustadora”. As manifestações funcionaram.
A greve geral de 1917 levou milhares de operários às ruas de São Paulo e marcou o início efetivo do anarcosindicalismo no Brasil, além de ajudar na formatação de uma consciência operária e pavimentar o caminho para a fundação do primeiro partido de esquerda no país, o PCB, em 1922. A grande marcha civilista de 23 de maio de 1932, em São Paulo, abriria caminho para a Revolução Constitucionalista. Mais que funcionar, as ruas escreveram a História.
O comício da Central do Brasil, no Rio, em 13 de março de 1964, deflagrou as reformas de base; as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, realizadas no Rio e em São Paulo decretaram a insurgência de um contramovimento, provando que as ruas cheias funcionam para a direita e para a esquerda. A Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968, assustou a ditadura militar, tanto quanto as greves do ABC em 1978/80, que consagraram o fenômeno Lula. Os comícios pelas Diretas Já em 1983 e 1984 marcaram o começo do fim para a ditadura.
Manifestações dos caras pintadas puseram abaixo o governo Collor, um caso clássico de impeachment turbinado pelas ruas. E as passeatas de 2013, iniciadas por movimentos de ultraesquerda, acabaram plasmando a inconformidade popular com a corrupção e puseram abaixo Dilma Rousseff. A História do Brasil está prenhe de exemplos da força que emerge das ruas, e é temerário não acreditar neles. Bolsonaro e Lula sabem que as ruas podem mudar o rumo da sucessão; mas o que interessa a eles é a polarização, não as ruas cheias. Por essa e outras, Saquaremas e Luzias, sempre tão parecidos, continuam se dando as mãos há 160 anos.
Carlos Marchi é jornalista e escritor, autor de “Todo aquele imenso mar de liberdade”, a biografia de Carlos Castello Branco (Editora Record)